PRESENTE DO INDICATIVO
entro na cozinha. Ela está no meio dos legumes,
lava e enxuga folhas tenras de alface, endívias
de oblonga contextura, corta a cebola às
rodelas, pica um ramo de coentros,
hesita um pouco sobre o roquefort, é certeira no vinagre e no sal,
e prudente no azeite. O ovo cozido espera a sua vez e a
saladeira aguarda na mesa junto aos azulejos brancos.
ela procura os talheres de madeira na gaveta,
pede-me qualquer coisa, a lâmina reluz sobre a tábua, perto do pão.
a preparação da salada requer vários gestos precisos
e uma poética discreta nos brilhos frisados, nos
paladares. pela janela chegam os ruídos da rua,
campainhas de bicicleta, ressaltos de uma bola.
o cão dormita no sofá. Uns versos populares comparam
os olhos dela a azeitonas pretas.
In "Poesia 1993-1995"
Círculo de Leitores
Vasco Graça Moura
(1942-2014)
SONETO DO AMOR E DA MORTE
quando eu morrer murmura esta canção
que escrevo para ti. quando eu morrer
fica junto de mim, não queiras ver
as aves pardas do anoitecer
a revoar na minha solidão.
quando eu morrer segura a minha mão,
põe os olhos nos meus se puder ser,
se inda neles a luz esmorecer,
e diz do nosso amor como se não
tivesse de acabar, sempre a doer,
sempre a doer de tanta perfeição
que ao deixar de bater-me o coração
fique por nós o teu inda a bater,
quando eu morrer segura a minha mão.
In "Antologia dos Sessenta Anos"
Edições Asa
Vasco Graça Moura
(1942-2014)
AMAR-TE CORPO A CORPO
Se é esta a doce lei que eu imagino
do amor que nos impõe o seu ditado,
amar-te corpo a corpo é o meu fado
E amarrar-me a ti o meu destino
sentir a própria alma em carne viva
respirar boca a boca e nesse jogo
atravessar-me em fogo no teu fogo
e alimentá-lo a beijos e saliva
se mais atino quando desatino
por meus jeitos de amor alvoroçado
é no alto mar revolto e desmaiado
que entre peripécias loucas me declino,
sendo cada carícia a mais lasciva
a inventar seus rumos afinal
na pura escuridão, na mais carnal,
que me cativa a mim e te cativa
entre as línguas, os sorvos, as gargantas,
doces gemidos, ternas resistências
e violências brandas, impaciências,
e tantas mais caricias, tantas, tantas
In “A Puxar Ao Sentimento”
Quetzal Editores
Vasco Graça Moura
(1942-2014)
SETEMBRO
agora o outono chega, nos seus plácidos
meneios pelas vinhas, um dos vizinhos passa
um cabaz de maçãs por sobre a vedação:
redondas, verdes, o seu perfume vai
dentro de quinze dias ser mais forte.
a noite cai mais cedo e apetece
guardar certos vermelhos da folhagem
e amarelos e castanhos nas ladeiras
de Setembro. a rádio fala no tempo variável
que vem aí dentro de dias. talvez caia
uma chuvinha benfazeja, a pôr no ponto certo
os bagos de uva. e há poalhas morosas, mais douradas.
aproveita-se o outono no macio
enchimento dos frutos para colhê-lo a tempo.
devagar, devagar. é mais doce no outono a tua pele.
In "Poesia 2001/2005"
Quetzal Editores
Vasco Graça Moura
(1942-2014)
VAI-SE A LASCIVA MÃO
vai-se a lasciva mão devagarinho
no biquinho do peito modelando
como nuns versos conhecidos quando
uma mulher a meio do caminho
era de vento e nuvens, sombras, vinho,
e sonoras risadas como um bando.
os dedos lestos vão desenredando
roupa, cabelos, fitas, desalinho.
a noite desce e a nudez define-a
por contrastes de luz e de negrume
ponto por ponto, alínea por alínea.
memória e amor e música e ciúme
transformados nos cachos da glicínia,
macerando no verão sombra e perfume.
In "Eros de Passagem, Poesia Erótica Contemporânea",
Selecção e prefácio de Eugénio de Andrade,
Ed. Campo das Letras - 1997
Vasco Graça Moura
(1942 - 2014)
. Mais poesia em
. Eu li...
. Recordando... Vasco Graça...
. Recordando... Vasco Graça...
. Recordando... Vasco Graça...
. Recordando... Vasco Graça...
. Recordando... Vasco Graça...