ENVOLVO-ME NO SILÊNCIO
Envolvo-me no silêncio da tua
chegada. O espelho turvo
do teu nome acelera em mim
a evidência deste corpo em
que persisto.
Fazes-me espesso, orgânico,
compacto em torno do absurdo forte
de nos imaginar reciprocamente
despenhados.
Porque sinto que caminho já no ar,
cada passo mais distante,
à espera da tua levitação, que me entendas
a um palmo do peito, enfim caídos
por consequência da rendição.
Entre nós e o mundo há
quinhentos metros
de grito.
In “Cerco Voluntário”
13º da colecção "Cadernos do Campo Alegre"
Vasco Gato
(N.1978)
SEMPRE
sempre que uma praia se levanta
és sempre tu que me tocas
e sempre tu quem aceita o sorriso
é sempre o sol embrulhado em terra pura
e sempre pura a voz que a terra canta
porque se ouvires a água na pedra
a água que sempre nos meus lábios sabe a ti
se ouvires a água na pedra tens a lua
a manhã o cereal de espuma que não pára de crescer
nos lábios teus que a água dos meus conhece
como o sol procura o dia e sempre acha a noite
e é na noite que sempre te digo
que sempre te juro as mãos enormes
e levanto a praia que tu levantas
quando sempre acordamos
e na nossa nudez se esconde a noite
em que lábios nos lábios criámos o mar
In "Um Mover de Mão"
Assírio & Alvim
Vasco Gato
(N. 1978)
O TRUNFO DO TEMPO
As flores que nascem contigo
são o leito onde hás-de morrer.
Neste dia a ilha dispensou o sol.
As águas opacas poderiam esconder
reluzentes peixes que nada
seria hoje revelado.
Respirávamos por baixo da cinza,
vagarosamente,
e crescia uma levíssima morte
que talvez nos lançasse
já noite
nas memórias vivas.
Antes, havíamos conhecido o privilégio.
Tivéramos tempo para construir
a muralha que sustentaria o céu.
Encontrámos as raízes puras
da nossa idade, éramos enormes
diante do fogo, como árvores
que chegassem de muito longe
para povoar o inóspito.
Havia esse saber secreto:
vem das árvores o ar
com que o fogo as consome.
O tempo conhece os seus trunfos.
As flores preparam-se para te receber.
E tu tens os olhos esculpidos pela febre,
a brancura, o frio nas mãos,
todos esses contrastes que antecedem
a chegada da primavera incalculável.
Sentes-te estalar desde o coração.
Há uma tapeçaria de gritos e silêncios
urdindo-se dentro de ti.
Pétalas no chão.
E agora és a primavera
em que todas as aves partiram,
levando consigo a ilha,
as memórias,
a dura revelação do rosto.
In “Imo”
Editora Quasi Edições – 2003
Vasco Gato
N. 1978
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