HISTÓRIA ANTIGA
Era uma vez, lá na Judeia, um rei.
Feio bicho, de resto:
Uma cara de burro sem cabresto
E duas grandes tranças.
A gente olhava, reparava, e via
Que naquela figura não havia
Olhos de quem gosta de crianças.
E, na verdade, assim acontecia.
Porque um dia,
O malvado,
Só por ter o poder de quem é rei
Por não ter coração,
Sem mais nem menos,
Mandou matar quantos eram pequenos
Nas cidades e aldeias da Nação.
Mas,
Por acaso ou milagre, aconteceu
Que, num burrinho pela areia fora,
Fugiu
Daquelas mãos de sangue um pequenito
Que o vivo sol da vida acarinhou;
E bastou
Esse palmo de sonho
Para encher este mundo de alegria;
Para crescer, ser Deus;
E meter no Inferno o tal das tranças,
Só porque ele não gostava de crianças.
Coimbra, 12 de Outubro de 1937
In “ Revista UNEARTA”
Ano 3 – N.º 32 – Agosto 2004
Miguel Torga
1907 – 1995
NATAL
Outro natal,
Outra comprida noite
De consoada
Fria,
Vazia,
Bonita só de ser imaginada.
Que fique dela, ao menos,
Mais um poema breve
Recitado
Pela neve
A cair, ao de leve,
No telhado.
In “Antologia Poética”
Miguel Torga
1907 – 1995
À FLOR DAS VAGAS
Vai a barca do mundo à flor das vagas
No seu mar de tormentas;
Gemem os remadores,
Mordidos pelo beijo de chicote;
E tu, poeta, como um sacerdote,
Da bonança,
A conjurar o mal,
A cantar,
Sem nenhum desespero,
Te desesperar!
Sabe cada ternura a pão azedo
Os acenos são olhos disfarçados;
E os teus versos,
Gratuitos, desfolhados,
Sobre as chagas da vida
Como pensos sagrados
De beleza calmante e condoída!
Que humanidade tens, irmão?
De onde te vem a força, a decisão
E esse gosto de nunca desertar?
És o Cristo, talvez...
Um Cristo sem altar
Que ficaste a lutar
Junto de nós,
Tão presente, real e natural,
Que podemos ouvir-lhe a própria voz.
Miguel Torga
1907 – 1995
PRECE
Senhor, deito-me na cama
Coberto de sofrimento;
E a todo o comprimento
Sou sete palmos de lama:
Sete palmos de excremento
Da terra-mãe que me chama.
Senhor, ergo-me do fim
Desta minha condição
Onde era sim, digo não
Onde era não, digo sim;
Mas não calo a voz do chão
Que grita dentro de mim.
Senhor, acaba comigo
Antes do dia marcado;
Um golpe bem acertado,
O tiro de um inimigo.....
Qualquer pretexto tirado
Dos sarcasmos que te digo.
Poema escrito a 11/12/1934
Miguel Torga
1907 – 1995
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