Quinta-feira, 7 de Março de 2024

Recordando... Ruy Belo

POVOAMENTO

 

No teu amor por mim há uma rua que começa

Nem árvores nem casas existiam

antes que tu tivesses palavras

e todo eu fosse um coração para elas

Invento-te e o céu azula-se sobre esta

triste condição de ter de receber

dos choupos onde cantam

os impossíveis pássaros

a nova primavera

Tocam sinos e levantam voo

todos os cuidados

Ó meu amor nem minha mãe

tinha assim um regaço

como este dia tem

E eu chego e sento-me ao lado

da primavera

 

In "Aquele grande rio Eufrates"

Assírio & Alvim

 

Ruy Belo

(1933-1978)

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Quarta-feira, 25 de Janeiro de 2023

Recordando... Ruy Belo

OS ESTIVADORES

 

Só eles suam mas só eles sabem

o preço de estar vivo sobre a terra

Só nessas mãos enormes é que cabem

as coisas mais reais que a vida encerra

 

Outros rirão e outros sonharão

podem outros roubar-lhes a alegria

mas a um deles é que chamo irmão

na vida que em seus gestos principia

 

Onde outrora houve o deus e houve a ninfa

eles são a moderna divindade

e o que antes era pura linfa

é o que sobra agora da cidade

 

Vede como alheios a tudo o resto

compram com o suor a claridade

e rasgam com a decisão do gesto

o muro oposto pela gravidade

 

Ode marítima é que chamo à ode

escrita ali sobre a pedra do cais

A natureza é certo muito pode

mas um homem de pé pode bem mais

 

In “Os Estivadores” 1974

 

Ruy Belo

(1933-1978)

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Domingo, 25 de Abril de 2021

Recordando... Ruy Belo

CANÇÃO DO LAVRADOR

 

Meus versos lavro-os ao rubro

neste página de terra

que abro em lábios. Descubro-

-lhe a voz que no fundo encerra

 

Os versos que faço sou-os

A relha rasga-me a vida

e amarra os sonhos de voos

que eu tinha à terra ferida

 

Poema que mais que escrevo

devo-te em vida. No húmus

a regos simples eu levo

os meus desvairados rumos

 

Mas mais que poema meu

(que eu nunca soube palavra)

isto que dispo sou eu

Poeta não escrevas lavra

 

In "Aquele Grande Rio Eufrates”  

Assírio & Alvim

 

Ruy Belo

(1933-1978)

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Quinta-feira, 25 de Fevereiro de 2021

Recordando... Ruy Belo

A FLOR DA SOLIDÃO

 

Vivemos convivemos resistimos
cruzámo-nos nas ruas sob as árvores
fizemos porventura algum ruído
traçámos pelo ar tímidos gestos
e no entanto por que palavras dizer
que nosso era um coração solitário silencioso
silencioso profundamente silencioso
e afinal o nosso olhar olhava
como os olhos que olham nas florestas
No centro da cidade tumultuosa
no ângulo visível das múltiplas arestas
a flor da solidão crescia dia a dia mais viçosa
Nós tínhamos um nome para isto
mas o tempo dos homens impiedoso
matou-nos quem morria até aqui
E neste coração ambicioso
sozinho como um homem morre cristo
Que nome dar agora ao vazio
que mana irresistível como um rio?
Ele nasce engrossa e vai desaguar
e entre tantos gestos é um mar
Vivemos convivemos resistimos
sem bem saber que em tudo um pouco nós morremos.

In “Obra Poética I”
Ed. Presença - 1990

Ruy Belo

(1933-1978)

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Segunda-feira, 13 de Maio de 2019

Recordando... Ruy Belo

NÓS OS VENCIDOS DO CATOLICISMO

 

Nós os vencidos do catolicismo

que não sabemos já donde a luz mana

haurimos o perdido misticismo

nos acordes dos carmina burana

 

Nós é que perdemos na luta da fé

não é que no mais fundo não creiamos

mas não lutamos já firmes e a pé

nem nada impomos do que duvidamos

 

Já nenhum garizim nos chega agora

depois de ouvir como a samaritana

que em espírito e verdade é que se adora

Deixem-me ouvir os carmina burana

 

Nesta vida é que nós acreditamos

e no homem que dizem que criaste

se temos o que temos o jogamos

«Meu deus meu deus porque me abandonaste?»

 

In “Obra Poética”

 

Ruy Belo

(1933-1978)

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Segunda-feira, 13 de Março de 2017

Recordando... Ruy Belo

DECLARAÇÃO DE AMOR A UMA ROMANA DO SÉCULO SEGUNDO

 

Um dia passaste pelos meus versos

Como eu agora passo por diante destas esculturas

que não merecem mais que um apressado olhar

Mas na tua presença eu tenho de parar

dama desconhecida com certeza viva mais aqui

que no segundo século em Roma onde viveste

Moldaram-te esse rosto abriram-te esse olhar

decerto impressionante para que uns dezoito séculos mais tarde

te pudesse encontrar quem mais que tu morreu

mas te ama ó mulher perdidamente

Não mais te esquecerei hei-de sonhar contigo

sei que te conquistei e libertei

de qualquer compromisso que tivesses

Ninguém sabe quem eras nem eu próprio

não tens sequer um nome uns apelidos

nada se sabe acerca do teu estado civil

Sei mais que tudo isso porque sei

que atravessaste séculos na forma de escultura

só para um dia nós nos encontrarmos

Tenho mulher e filhos sou de longe

a lei é rígida e severa a sociedade

Não te importes mulher deixa-te estar

não penses não te mexas podes estar certa

de que me deste mais do que tudo o demais que me pudesses dar

pois para ser diferente de quem era

bastou-me ver teu rosto e mais que ver olhar

 

In “Transporte no Tempo”

Editora Presença

 

Ruy Belo

(1933-1978)

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Sábado, 13 de Fevereiro de 2016

Recordando... Ruy Belo

POEMA QUASE APOSTÓLICO

 

Está sereno o poeta

Desprende-se-lhe dos ombros e cai

depois em pregas por ele abaixo a manhã

Não pertencem ao dia os gestos que ele tem

não morreram na noite seus assombrosos passos

Dizem que ele volta a pôr em movimento a roda

de crianças de atitudes desmedidas

que o vento varreu e parque algum queria

E abre os braços para deixar cair na cidade

um ano favorável ao senhor

E põe o rosto do senhor por trás das suas palavras

Elas decerto o hão-de dar a quem as demandar

 

In "Cidadão de longe e de ninguém"

Antologia Poética

Círculo de Leitores

 

Ruy Belo

(1933-1978)

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Domingo, 9 de Janeiro de 2011

Recordando... Ruy Belo

POEMA PARA CATARINA

 

Hei-de levar-te filha a conhecer a neve
tu que sabes do sol e das marés
mas nunca repousaste os teus pequenos pés
na alvura que só longe e em ti houve

 

Tinha estado na morte e não pudera
aguentar tamanha solidão
mas depois tive a companhia do nevão
e tu hás-de vir filha com a primavera

 

E o deslumbrante resplendor da alegria
tua felicidade eterna à vida
já não permitirão tua partida
quando raiar fatal o novo dia

 

As barcas carregadas com as rosas
virão perto daquela pura voz
abandonada pelos meus longínquos avós
em lagoas profundas perigosas

 

Não me afecta o mínimo cuidado
sinto-me vertical sinto-me forte
embora leve em mim até à morte
a cabeça de um príncipe coitado

 

Naquelas madrugadas primitivas
eu segredava um secreto pranto
vizinho da alegria enquanto
pelos dois tu ias de mãos vivas

 

O costume da minha solidão
é ver pela janela as oliveiras
que de todas as árvores foram as primeiras
que tocaram meu jovem coração

 

Purificado pelo tempo estou
um tempo de feroz esquecimento
vem minha filha vem neste momento
em que eu liberto ao teu encontro vou

 

Recordo-me do teu cabelo de chuva
quando tu caminhavas ágil e ladina
pelos desfiladeiros da neblina
nessa distante região da uva

 

Minha paixão viril serena pelos ritos
deseja que na minha companhia
tu sejas imolada à alegria
na surda região alheia aos gritos

 

Não olhes o meu rosto devastado pela idade
a vida para mim é como se chovesse
mas se viesses seria como se me acontecesse
cantar contigo a perene mocidade

 

O tempo em que viesses sim seria
um tempo vertebrado um tempo inteiro
e não meras palavras arrancadas ao tinteiro
e alinhadas em fugaz caligrafia

 

Viesses tu que a tua vinda afastaria
todos os meus cuidados transeuntes
e para sempre alegre viveria
os meus dias infantes já distantes

 

A solução da solidão compartilhada
onde vejo o meu mais profundo mundo
seria a solução ampla e sem fundo
oposta sem resposta ao meu país do nada

 

Com a voracidade do olvido
seria só tu vires e lutares
e por mim de olhos enormes e crepusculares
serias ente querido recebido

 

Volta com as primeiros anjos de dezembro
num vasto laranjal eu quero amar-te
e então a tua vida há-de ser a minha arte
e o teu vulto a única coisa que relembro

O passado é mentira digo eu
sensível ao esplendor do meio-dia
e sob a árvore plena de alegria
o mínimo cuidado esmoreceu

 

Ao grande peso de tanto passado
com a insónia da dúvida na testa
basta a tua presença que protesta
e todo eu me sinto renovado

 

 

Madrid, 15/V/1977

 

In “Obra Poética” – Volume 2

 

Ruy Belo

1933 – 1978

 

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Quarta-feira, 5 de Maio de 2010

Recordando... Ruy Belo... Poeta do Séc. XX

MORTE AO MEIO-DIA

 

No meu país não acontece nada
à terra vai-se pela estrada em frente
Novembro é quanta cor o céu consente
às casas com que o frio abre a praça

 

Dezembro vibra vidros brande as folhas
a brisa sopra e corre e varre o adro menos mal
que o mais zeloso varredor municipal
Mas que fazer de toda esta cor azul

 

que cobre os campos neste meu país do sul?
A gente é previdente cala-se e mais nada
A boca é pra comer e pra trazer fechada
o único caminho é direito ao sol

 

No meu país não acontece nada
o corpo curva ao peso de uma alma que não sente
Todos temos janela para o mar voltada
o fisco vela e a palavra era para toda a gente

 

E juntam-se na casa portuguesa
a saudade e o transístor sob o céu azul
A indústria prospera e fazem-se ao abrigo
da velha lei mental pastilhas de mentol

 

Morre-se a ocidente como o sol à tarde
Cai a sirene sob o sol a pino
Da inspecção do rosto o próprio olhar nos arde
Nesta orla costeira qual de nós foi um dia menino?

 

Há neste mundo seres para quem
a vida não contém contentamento
E a nação faz um apelo à mãe,
atenta a gravidade do momento

 

O meu país é o que o mar não quer
é o pescador cuspido à praia à luz do dia
pois a areia cresceu e a gente em vão requer
curvada o que de fronte erguida já lhe pertencia

 

A minha terra é uma grande estrada
que põe a pedra entre o homem e a mulher
O homem vende a vida e verga sob a enxada
O meu país é o que o mar não quer

 

 

In “Boca Bilingue”

Editorial Presença

 

 

Ruy Belo

1933 – 1978  

 

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