NÓS OS VENCIDOS DO CATOLICISMO
Nós os vencidos do catolicismo
que não sabemos já donde a luz mana
haurimos o perdido misticismo
nos acordes dos carmina burana
Nós é que perdemos na luta da fé
não é que no mais fundo não creiamos
mas não lutamos já firmes e a pé
nem nada impomos do que duvidamos
Já nenhum garizim nos chega agora
depois de ouvir como a samaritana
que em espírito e verdade é que se adora
Deixem-me ouvir os carmina burana
Nesta vida é que nós acreditamos
e no homem que dizem que criaste
se temos o que temos o jogamos
«Meu deus meu deus porque me abandonaste?»
In “Obra Poética”
Ruy Belo
(1933-1978)
DECLARAÇÃO DE AMOR A UMA ROMANA DO SÉCULO SEGUNDO
Um dia passaste pelos meus versos
Como eu agora passo por diante destas esculturas
que não merecem mais que um apressado olhar
Mas na tua presença eu tenho de parar
dama desconhecida com certeza viva mais aqui
que no segundo século em Roma onde viveste
Moldaram-te esse rosto abriram-te esse olhar
decerto impressionante para que uns dezoito séculos mais tarde
te pudesse encontrar quem mais que tu morreu
mas te ama ó mulher perdidamente
Não mais te esquecerei hei-de sonhar contigo
sei que te conquistei e libertei
de qualquer compromisso que tivesses
Ninguém sabe quem eras nem eu próprio
não tens sequer um nome uns apelidos
nada se sabe acerca do teu estado civil
Sei mais que tudo isso porque sei
que atravessaste séculos na forma de escultura
só para um dia nós nos encontrarmos
Tenho mulher e filhos sou de longe
a lei é rígida e severa a sociedade
Não te importes mulher deixa-te estar
não penses não te mexas podes estar certa
de que me deste mais do que tudo o demais que me pudesses dar
pois para ser diferente de quem era
bastou-me ver teu rosto e mais que ver olhar
In “Transporte no Tempo”
Editora Presença
Ruy Belo
(1933-1978)
POEMA QUASE APOSTÓLICO
Está sereno o poeta
Desprende-se-lhe dos ombros e cai
depois em pregas por ele abaixo a manhã
Não pertencem ao dia os gestos que ele tem
não morreram na noite seus assombrosos passos
Dizem que ele volta a pôr em movimento a roda
de crianças de atitudes desmedidas
que o vento varreu e parque algum queria
E abre os braços para deixar cair na cidade
um ano favorável ao senhor
E põe o rosto do senhor por trás das suas palavras
Elas decerto o hão-de dar a quem as demandar
In "Cidadão de longe e de ninguém"
Antologia Poética
Círculo de Leitores
Ruy Belo
(1933-1978)
POEMA PARA CATARINA
Hei-de levar-te filha a conhecer a neve
tu que sabes do sol e das marés
mas nunca repousaste os teus pequenos pés
na alvura que só longe e em ti houve
Tinha estado na morte e não pudera
aguentar tamanha solidão
mas depois tive a companhia do nevão
e tu hás-de vir filha com a primavera
E o deslumbrante resplendor da alegria
tua felicidade eterna à vida
já não permitirão tua partida
quando raiar fatal o novo dia
As barcas carregadas com as rosas
virão perto daquela pura voz
abandonada pelos meus longínquos avós
em lagoas profundas perigosas
Não me afecta o mínimo cuidado
sinto-me vertical sinto-me forte
embora leve em mim até à morte
a cabeça de um príncipe coitado
Naquelas madrugadas primitivas
eu segredava um secreto pranto
vizinho da alegria enquanto
pelos dois tu ias de mãos vivas
O costume da minha solidão
é ver pela janela as oliveiras
que de todas as árvores foram as primeiras
que tocaram meu jovem coração
Purificado pelo tempo estou
um tempo de feroz esquecimento
vem minha filha vem neste momento
em que eu liberto ao teu encontro vou
Recordo-me do teu cabelo de chuva
quando tu caminhavas ágil e ladina
pelos desfiladeiros da neblina
nessa distante região da uva
Minha paixão viril serena pelos ritos
deseja que na minha companhia
tu sejas imolada à alegria
na surda região alheia aos gritos
Não olhes o meu rosto devastado pela idade
a vida para mim é como se chovesse
mas se viesses seria como se me acontecesse
cantar contigo a perene mocidade
O tempo em que viesses sim seria
um tempo vertebrado um tempo inteiro
e não meras palavras arrancadas ao tinteiro
e alinhadas em fugaz caligrafia
Viesses tu que a tua vinda afastaria
todos os meus cuidados transeuntes
e para sempre alegre viveria
os meus dias infantes já distantes
A solução da solidão compartilhada
onde vejo o meu mais profundo mundo
seria a solução ampla e sem fundo
oposta sem resposta ao meu país do nada
Com a voracidade do olvido
seria só tu vires e lutares
e por mim de olhos enormes e crepusculares
serias ente querido recebido
Volta com as primeiros anjos de dezembro
num vasto laranjal eu quero amar-te
e então a tua vida há-de ser a minha arte
e o teu vulto a única coisa que relembro
O passado é mentira digo eu
sensível ao esplendor do meio-dia
e sob a árvore plena de alegria
o mínimo cuidado esmoreceu
Ao grande peso de tanto passado
com a insónia da dúvida na testa
basta a tua presença que protesta
e todo eu me sinto renovado
Madrid, 15/V/1977
In “Obra Poética” – Volume 2
Ruy Belo
1933 – 1978
MORTE AO MEIO-DIA
No meu país não acontece nada
à terra vai-se pela estrada em frente
Novembro é quanta cor o céu consente
às casas com que o frio abre a praça
Dezembro vibra vidros brande as folhas
a brisa sopra e corre e varre o adro menos mal
que o mais zeloso varredor municipal
Mas que fazer de toda esta cor azul
que cobre os campos neste meu país do sul?
A gente é previdente cala-se e mais nada
A boca é pra comer e pra trazer fechada
o único caminho é direito ao sol
No meu país não acontece nada
o corpo curva ao peso de uma alma que não sente
Todos temos janela para o mar voltada
o fisco vela e a palavra era para toda a gente
E juntam-se na casa portuguesa
a saudade e o transístor sob o céu azul
A indústria prospera e fazem-se ao abrigo
da velha lei mental pastilhas de mentol
Morre-se a ocidente como o sol à tarde
Cai a sirene sob o sol a pino
Da inspecção do rosto o próprio olhar nos arde
Nesta orla costeira qual de nós foi um dia menino?
Há neste mundo seres para quem
a vida não contém contentamento
E a nação faz um apelo à mãe,
atenta a gravidade do momento
O meu país é o que o mar não quer
é o pescador cuspido à praia à luz do dia
pois a areia cresceu e a gente em vão requer
curvada o que de fronte erguida já lhe pertencia
A minha terra é uma grande estrada
que põe a pedra entre o homem e a mulher
O homem vende a vida e verga sob a enxada
O meu país é o que o mar não quer
In “Boca Bilingue”
Editorial Presença
Ruy Belo
1933 – 1978
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