TESTAMENTO
Se por acaso morrer durante o sono
não quero que te preocupes inutilmente.
Será apenas uma noite sucedendo-se
a outra noite interminavelmente.
Se a doença me tolher na cama
e a morte aí me for buscar,
beija Amor, com a força de quem ama,
estes olhos cansados, no último instante.
Se, pela triste monotonia do entardecer,
me encontrarem estendido e morto,
quero que me venhas ver
e tocar o frio e sangue do corpo.
Se, pelo contrário, morrer na guerra
e ficar perdido no gelo de qualquer Coreia,
quero que saibas, Amor, quero que saibas,
pelo cérebro rebentado, pela seca veia,
pela pólvora e pelas balas entranhadas
na dura carne gelada,
que morri sim, que me não repito,
mas que ecoo inteiro na força do meu grito.
In "Memória Consentida: 20 Anos de Poesia 1959-1979"
Imprensa Nacional-Casa da Moeda
Rui Knopfli
(1932-1997)
O FIO DA VIDA
Há homens que rezam na penumbra
das catedrais dolentes e há outros
que do alto das pontes olham
a escuridão rumorejante das águas.
Há homens que esperam na orla
marítima e outros arrastando-se
no viscoso esterco dos subterrâneos.
Há homens debruçados em pleno azul
e outros que deslizam sobre densos verdes;
há os desatentos na atenção e os que
espreitam atentamente a ocasião.
Há homens por fora e por dentro
do cimento armado, suspensos
das mil ciladas do quotidiano voraz;
de encontro aos muros, às paredes,
ao sol do meio-dia, ao visco da noite,
às sediças solicitações de cada instante.
Há a impotência poderosa da oração
e a obsessão amarga dos suicidas
e, de permeio, os que, porque hesitam,
porque ignoram, porque não crêem,
não oram, nem se suicidam
e se quedam ante a impossibilidade de destrinça
entre o fio da vida e a vida por um fio.
In "Memória Consentida"
Rui Knopfli
(1932-1997)
LEMBRANÇAS DO FUTURO
Traz-me lembranças tristes o porvir,
mais do que as débeis luzes a jusante
acesas por consentidas saudades.
O pranto do homem é o menino perdido,
mas a criança que chora na margem
não se chora. Chora o homem:
só os poetas têm lembranças do futuro.
In "Memória consentida, 20 anos de Poesia 1959/1979"
INCM - Imprensa Nacional-Casa da Moeda
Rui Knopfli
(1932-1997)
ILHA DOURADA
A fortaleza mergulha no mar
os cansados flancos
e sonha com impossíveis
naves moiras
Tudo mais são ruas prisioneiras
e casas velhas a mirar o tédio
As gentes calam na
voz
uma vontade antiga de lágrimas
e um riquexó de sono
desce a Travessa da "Amizade"
Em pleno dia claro
vejo-te adormecer na distância,
Ilha de Moçambique,
e faço-te estes versos
de sal e esquecimento
In "A Ilha de Próspero"
Rui Knopfli
1932 – 1997
INVENTÁRIO
Rosas inglesas rosa pálido tingido
de alvura, gravatas Lanvin e Ricci.
Na mão a demorada taça de ordálio,
ouro velho e insidioso, doce cheiro a fumo.
Objectos familiares, ténues, difusas
lembranças de longe. Um crânio
de ébano negrejando entre a luz
e a garrulice do barro artesanal,
o cio magoado da voz fadista. A ilha ao sol,
ao sonho, amortalhada na distância.
O cajueiro e a mafurra, micaias
agrestes, panoramas da infância,
dolorosos, esbatidos fantasmas
de outro tempo, agigantados em olmos
e castanheiros na oval cinzenta
do No Man's Common. Livros por abrir
dormitando na poeira, o gráfico
anguloso do horóscopo, retratos,
memória paralisando o instante
esquecido. A mulher de passagem,
velo fulvo, debrum para o azul
lavado do olhar, perfil mitigando
a vacilante modorra do entardecer.
Alongada curva do flanco retraindo-se
sob a experimentada carícia antiga
dos dedos cansados. Toda a memória
inflectindo o gesto, o gesto já só memória
que de si mesma se desprende e afasta,
conjecturando, indolor, a paisagem
neutra dos dias que se avizinham ermos.
In “O Corpo de Atena”
Imprensa Nacional-Casa da Moeda – 1984
Rui Knopfli
1932 – 1997
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