Sexta-feira, 1 de Outubro de 2021

Recordando... Rui Knopfli

TESTAMENTO

 

Se por acaso morrer durante o sono

não quero que te preocupes inutilmente.

Será apenas uma noite sucedendo-se

a outra noite interminavelmente.

 

Se a doença me tolher na cama

e a morte aí me for buscar,

beija Amor, com a força de quem ama,

estes olhos cansados, no último instante.

 

Se, pela triste monotonia do entardecer,

me encontrarem estendido e morto,

quero que me venhas ver

e tocar o frio e sangue do corpo.

 

Se, pelo contrário, morrer na guerra

e ficar perdido no gelo de qualquer Coreia,

quero que saibas, Amor, quero que saibas,

pelo cérebro rebentado, pela seca veia,

 

pela pólvora e pelas balas entranhadas

na dura carne gelada,

que morri sim, que me não repito,

mas que ecoo inteiro na força do meu grito.

 

In "Memória Consentida: 20 Anos de Poesia 1959-1979"

Imprensa Nacional-Casa da Moeda

 

Rui Knopfli

(1932-1997)

publicado por cateespero às 00:00
link do post | Deixe seu comentário | favorito
Domingo, 25 de Outubro de 2020

Recordando... Rui Knopfli

O FIO DA VIDA

 

Há homens que rezam na penumbra

das catedrais dolentes e há outros

que do alto das pontes olham

a escuridão rumorejante das águas.

Há homens que esperam na orla

marítima e outros arrastando-se

no viscoso esterco dos subterrâneos.

Há homens debruçados em pleno azul

e outros que deslizam sobre densos verdes;

há os desatentos na atenção e os que

espreitam atentamente a ocasião.

Há homens por fora e por dentro

do cimento armado, suspensos

das mil ciladas do quotidiano voraz;

de encontro aos muros, às paredes,

ao sol do meio-dia, ao visco da noite,

às sediças solicitações de cada instante.

Há a impotência poderosa da oração

e a obsessão amarga dos suicidas

e, de permeio, os que, porque hesitam,

porque ignoram, porque não crêem,

não oram, nem se suicidam

e se quedam ante a impossibilidade de destrinça

entre o fio da vida e a vida por um fio.

 

In "Memória Consentida"

 

Rui Knopfli

(1932-1997)

publicado por cateespero às 00:00
link do post | Deixe seu comentário | favorito
Domingo, 30 de Abril de 2017

Recordando... Rui Knopfli

LEMBRANÇAS DO FUTURO

 

Traz-me lembranças tristes o porvir,

mais do que as débeis luzes a jusante

acesas por consentidas saudades.

O pranto do homem é o menino perdido,

mas a criança que chora na margem

não se chora. Chora o homem:

 

só os poetas têm lembranças do futuro.

 

In "Memória consentida, 20 anos de Poesia 1959/1979"

INCM - Imprensa Nacional-Casa da Moeda

 

Rui Knopfli

(1932-1997)

publicado por cateespero às 00:00
link do post | Deixe seu comentário | favorito
Terça-feira, 13 de Setembro de 2011

Recordando... Rui Knopfli

ILHA DOURADA

 

A fortaleza mergulha no mar

os cansados flancos

e sonha com impossíveis

naves moiras

Tudo mais são ruas prisioneiras

e casas velhas a mirar o tédio

As gentes calam na

voz

uma vontade antiga de lágrimas

e um riquexó de sono

desce a Travessa da "Amizade"

Em pleno dia claro

vejo-te adormecer na distância,

Ilha de Moçambique,

e faço-te estes versos

de sal e esquecimento

 

 

In "A Ilha de Próspero"

 

Rui Knopfli
1932 – 1997

publicado por cateespero às 00:00
link do post | Deixe seu comentário | favorito
Domingo, 29 de Agosto de 2010

Recordando... Rui Knopfli

INVENTÁRIO

Rosas inglesas rosa pálido tingido
de alvura, gravatas Lanvin e Ricci.
Na mão a demorada taça de ordálio,
ouro velho e insidioso, doce cheiro a fumo.
Objectos familiares, ténues, difusas

lembranças de longe. Um crânio
de ébano negrejando entre a luz
e a garrulice do barro artesanal,
o cio magoado da voz fadista. A ilha ao sol,
ao sonho, amortalhada na distância.

O cajueiro e a mafurra, micaias
agrestes, panoramas da infância,
dolorosos, esbatidos fantasmas
de outro tempo, agigantados em olmos
e castanheiros na oval cinzenta

do No Man's Common. Livros por abrir
dormitando na poeira, o gráfico
anguloso do horóscopo, retratos,
memória paralisando o instante
esquecido. A mulher de passagem,

velo fulvo, debrum para o azul
lavado do olhar, perfil mitigando
a vacilante modorra do entardecer.
Alongada curva do flanco retraindo-se
sob a experimentada carícia antiga

dos dedos cansados. Toda a memória
inflectindo o gesto, o gesto já só memória
que de si mesma se desprende e afasta,
conjecturando, indolor, a paisagem
neutra dos dias que se avizinham ermos.


In “O Corpo de Atena”

Imprensa Nacional-Casa da Moeda – 1984

 

 

Rui Knopfli
1932 – 1997

publicado por cateespero às 00:00
link do post | Deixe seu comentário | favorito

.Eu

.pesquisar

 

.Março 2024

Dom
Seg
Ter
Qua
Qui
Sex
Sab
1
2
3
4
5
6
7
8
9
10
11
12
14
15
16
17
18
20
21
22
23
24
25
26
27
28
29
30
31

.Ano XVI

.posts recentes

. Recordando... Rui Knopfli

. Recordando... Rui Knopfli

. Recordando... Rui Knopfli

. Recordando... Rui Knopfli

. Recordando... Rui Knopfli

.arquivos

. Março 2024

. Fevereiro 2024

. Janeiro 2024

. Dezembro 2023

. Novembro 2023

. Outubro 2023

. Setembro 2023

. Agosto 2023

. Julho 2023

. Junho 2023

. Maio 2023

. Abril 2023

. Março 2023

. Fevereiro 2023

. Janeiro 2023

. Dezembro 2022

. Novembro 2022

. Outubro 2022

. Setembro 2022

. Agosto 2022

. Julho 2022

. Junho 2022

. Maio 2022

. Abril 2022

. Março 2022

. Fevereiro 2022

. Janeiro 2022

. Dezembro 2021

. Novembro 2021

. Outubro 2021

. Setembro 2021

. Agosto 2021

. Julho 2021

. Junho 2021

. Maio 2021

. Abril 2021

. Março 2021

. Fevereiro 2021

. Janeiro 2021

. Dezembro 2020

. Novembro 2020

. Outubro 2020

. Setembro 2020

. Agosto 2020

. Julho 2020

. Junho 2020

. Maio 2020

. Abril 2020

. Março 2020

. Fevereiro 2020

. Janeiro 2020

. Dezembro 2019

. Novembro 2019

. Outubro 2019

. Setembro 2019

. Agosto 2019

. Julho 2019

. Junho 2019

. Maio 2019

. Abril 2019

. Março 2019

. Fevereiro 2019

. Janeiro 2019

. Dezembro 2018

. Novembro 2018

. Outubro 2018

. Setembro 2018

. Agosto 2018

. Julho 2018

. Junho 2018

. Maio 2018

. Abril 2018

. Março 2018

. Fevereiro 2018

. Janeiro 2018

. Dezembro 2017

. Novembro 2017

. Outubro 2017

. Setembro 2017

. Agosto 2017

. Julho 2017

. Junho 2017

. Maio 2017

. Abril 2017

. Março 2017

. Fevereiro 2017

. Janeiro 2017

. Dezembro 2016

. Novembro 2016

. Outubro 2016

. Setembro 2016

. Agosto 2016

. Julho 2016

. Junho 2016

. Maio 2016

. Abril 2016

. Março 2016

. Fevereiro 2016

. Janeiro 2016

. Dezembro 2015

. Novembro 2015

. Outubro 2015

. Setembro 2015

. Agosto 2015

. Julho 2015

. Junho 2015

. Maio 2015

. Abril 2015

. Março 2015

. Fevereiro 2015

. Janeiro 2015

. Dezembro 2014

. Novembro 2014

. Outubro 2014

. Setembro 2014

. Agosto 2014

. Julho 2014

. Junho 2014

. Maio 2014

. Abril 2014

. Março 2014

. Fevereiro 2014

. Janeiro 2014

. Dezembro 2013

. Novembro 2013

. Outubro 2013

. Setembro 2013

. Agosto 2013

. Julho 2013

. Junho 2013

. Maio 2013

. Abril 2013

. Março 2013

. Fevereiro 2013

. Janeiro 2013

. Dezembro 2012

. Novembro 2012

. Outubro 2012

. Setembro 2012

. Agosto 2012

. Julho 2012

. Junho 2012

. Maio 2012

. Abril 2012

. Março 2012

. Fevereiro 2012

. Janeiro 2012

. Dezembro 2011

. Novembro 2011

. Outubro 2011

. Setembro 2011

. Agosto 2011

. Julho 2011

. Junho 2011

. Maio 2011

. Abril 2011

. Março 2011

. Fevereiro 2011

. Janeiro 2011

. Dezembro 2010

. Novembro 2010

. Outubro 2010

. Setembro 2010

. Agosto 2010

. Julho 2010

. Junho 2010

. Maio 2010

. Abril 2010

. Março 2010

. Fevereiro 2010

. Janeiro 2010

. Dezembro 2009

. Novembro 2009

. Outubro 2009

. Setembro 2009

. Agosto 2009

. Julho 2009

. Junho 2009

. Maio 2009

. Abril 2009

. Março 2009

. Fevereiro 2009

. Janeiro 2009

. Dezembro 2008

. Novembro 2008

. Outubro 2008

. Setembro 2008

. Agosto 2008

. Julho 2008

. Junho 2008

. Maio 2008

. Abril 2008

. Março 2008

. Fevereiro 2008

. Janeiro 2008

. Dezembro 2007

. Novembro 2007

. Outubro 2007

. Setembro 2007

. Agosto 2007

. Julho 2007

. Junho 2007

. Maio 2007

. Abril 2007

.tags

. todas as tags

blogs SAPO

.subscrever feeds