SEM LIVRO DE RECLAMAÇÕES
No princípio era o verbo
e agora ninguém responde.
O marido, a amante, a família e os amigos,
todos alinhados sobre as campas.
Começam pela oração ou o correspondente laico
e logo passam às súplicas e aos subornos.
Os cemitérios são repartições públicas.
Por isso não há respostas.
Há noites mal dormidas pelas razões erradas.
Esta noite a cama tremeu três vezes. Os teus balbucios
na minha boca. A tua pele húmida. Sou o teu epitáfio?
A família e os demais continuam a acorrer aos balcões
sem os formulários preenchidos.
Os mortos já não pertencem às respostas.
Qualquer adjectivo apodrece como as flores.
Qualquer frase se decompõe sem sujeito.
Sou apenas uma tatuagem na tua campa.
No princípio era o fim.
In “Gado do Senhor”
Editora &Etc - 2011
Rosa Alice Branco
(N.1950)
REPETIÇÃO DO DESERTO
Atravessar o deserto em círculos incandescentes
repeti-lo até à proximidade do que se anula
é dar-lhe um rosto.
Não a pura evanescência do visível
a floração que se espera de um olhar
mas uma imagem pobre ancorada no silêncio
esse rosto volta-se no mesmo movimento
que o encerra na distância.
O que fizemos dele arrasta-se como o mar
prematuramente inclinado sobre o chão
o rosto é um feixe de memória seca
é assim que o deserto reflecte as cidades
sem a consciência aquática
das coisas intocadas.
In "Animais da Terra"
Editora Limiar
Rosa Alice Branco
(N.1950)
DIAS MELHORES
A mulher espera as noites e também os dias,
esperta o lume enquanto, esperta a espera.
Há umas quantas coisas que a prendem, coisas
que arrecadou para a vida e já não servem.
Quem serve é ela e serve a Deus desfiando o rosário
pelos que já lá estão.
Por aqui vai-se indo, vai-se levando a vida
para o outro lado enquanto se esperam dias melhores,
dias mecânicos, a labuta dos músculos, a cabeça em paz
e a noite cansada, os pensamentos cansados,
o sofrimento cansado só quer estender o corpo
até de manhã. Quando mal nunca pior,
o café quente, o pão acabado de fazer
como se fosse cedo e as mãos na sua azáfama
pudessem fazer os dias gloriosos as noites luminosas
com que sonhou e já não servem. Agora só a espera
e as coisas que foi arrecadando para a morte.
In “Da Alma e dos Espíritos Animais”
Editora Campo das Letras
Rosa Alice Branco
(N.1950)
À FLOR DA PELE
Nunca vi nervos à flor da pele, mas sinto
a doçura do pólen e deixo a língua escorregar
pelo teu corpo. Dizem que os nervos se reflectem
nos intestinos. A flor dos intestinos cura-se
com a flor do iogurte. É um universo completo:
da flora à fauna intestinal, de dobra em dobra,
a vista da montanha, a festa dos vales
e pequenos seres despertando
no côncavo, no invisível cheio de promessas.
Deve ser terrível ter os nervos à flor da pele,
acalmá-los com massagens suaves até murcharem
ou então deixar os nervos à superfície
como um ouriço-cacheiro, um ouriço-do-mar
se viver no litoral. É um mundo perigoso.
São horas: Levo a minha pele à rua
presa pela correia do relógio.
In “Da Alma e dos Espíritos Animais”
Campo das Letras – 2001
Rosa Alice Branco
N. 1950
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