QUEM
Quem empunhou o machado
e cortou a flor de lume?
Quem fez o estranho noivado
das estrelas com o estrume?
Quem nada na maré falsa
com braços de maré cheia?
Quem quer a fome descalça
por causa de um pé de meia?
Quem traz a vida aos soluços
no gume de uma navalha?
Quem põe um homem de bruços
por dá cá aquela palha?
Quem da vida faz um fardo
e da mentira o exemplo?
Quem da rosa faz um cardo
no altar do nosso templo?
Quem é que se diz profeta
e é traidor na sua terra?
Quem é que fez da caneta
uma arma em pé de guerra?
Quem é que vende o meu povo
por interesse nacional?
Quem fez de Colombo um ovo
e descobriu Portugal?
Quem pretende que eu me cale
porque a poesia é perigosa?
Quem é que quer afinal
uma canção cor-de-rosa?
In "125 Poemas – Antologia Poética"
Litexa Editora – Lisboa
Joaquim Pessoa
N. 1948
QUEM MUITO VIU
Quem muito viu, sofreu, passou trabalhos,
mágoas, humilhações, tristes surpresas;
e foi traído, e foi roubado, e foi
privado em extremo da justiça justa;
e andou terras e gentes, conheceu
os mundos e submundos; e viveu
dentro de si o amor de ter criado;
quem tudo leu e amou, quem tudo foi –
não sabe nada, nem triunfar lhe cabe
em sorte como a todos os que vivem.
Apenas não viver lhe dava tudo.
Inquieto e franco, altivo e carinhoso,
será sempre sem pátria. E a própria morte,
quando o buscar, há-de encontrá-lo morto.
“Peregrinatio ad loca infecta”
Portugália – 1969
In “Ler Por Gosto”
Areal Editores
Jorge de Sena
1919 – 1978
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