VOZ QUE ESCUTA
Chamam-me lá em baixo.
São as coisas que não puderam decorar-me:
As que ficaram a mirar-me longamente
E não acreditaram;
As que sem coração, no relâmpago do grito,
Não puderam colher-me.
Chamam-me lá em baixo,
Quase ao nível do mar, quase à beira do mar,
Onde a multidão formiga
Sem saber nadar.
Chamam-me lá em baixo
Onde tudo é vigoroso e opaco pelo dia adiante
E transparente e desgraçado e vil
Quando a noite vem, criança distraída,
Que debilmente apaga os traços brancos
Deste quadro negro - a Vida.
Chamam-me lá em baixo:
Voz de coisas, voz de luta.
É uma voz que estala e mansamente cala
E me escuta.
In “As Três Pessoas”
Portugália Editora
Políbio Gomes dos Santos
(1911-1939)
GÉNESIS
O mundo existe desde que eu fui nado.
Tudo o mais é um… era uma vez
- A história que se contou.
No princípio criou-se o leite que mamei
E eu vi que era bom e chorei
Quando a fonte materna secou.
A terra era sem forma
E vazia;
Havia trevas no abismo.
E formou-se o chão
E amassou-se o pão
Que eu comi.
(Era este aquela esponja que eu mordia,
Que eu babava,
Que eu sujava,
Que uma gente andrajosa pedia).
E então se fez
A geração remota dos papões:
Nascera a esmola, o medo, a prece
E o rosto que empalidece…
E a rosa criou-se,
Desejada,
E logo o espinho,
A lágrima,
O sangue.
Este era vermelho e doce,
A lágrima doce, brilhante, salgada;
No espinho havia o gosto
Da vingança perfumada.
E eu vi que tudo era bom.
E fizeram-se os luminares,
Porque eu tinha olhos,
E o som fez-se de cantares
E de gemidos,
Porque eu tinha ouvidos.
Nasceram as águas
E os peixes das águas
E alguns seres viventes da terra
E as aves dos céus.
O homem que então era vagamente feito,
Dominou o homem, comprimiu-lhe o peito,
E fizeram-se as mágoas
E o adeus,
E eu vi que tudo era bom.
A mulher só mais tarde se fez:
Foi duma vez
Em que eu e ela nos somámos
E ficamos três.
Nisto e no mais se gastaram
Sete longuíssimos dias,
O mundo era feito
E embora por tudo e nada imperfeito,
Eu vi que era bom.
Acaba o mundo
Quando eu morrer.
Sim… será o fim!
Também tu deixas de existir,
No mesmo dia.
E o resto que seguir
É profecia.
In “As Três Pessoas”
Portugália Editora
Políbio Gomes dos Santos
(1911-1939)
MEDITAÇÂO
O dia de hoje vem triste.
Eu penso que a terra dorme
Num grande caixão de chumbo;
São as pessoas os vermes,
Que vão roendo,
E as árvores são as flores
Que vão murchando
Sobre o cadáver imenso
Que me parece pequeno.
Também eu durmo este sono
E dormindo
Vou roendo o magro pomo
Que tombou do infinito,
No caixão,
Feito de chumbo e granito.
E roendo
A boca me sabe a mim
- Fica-me um travo de fim
De eternidade.
Neste silêncio,
Grito a minha ambição biológica do aborto
Que quis nascer completo
E veio feto
E torto...
Grito a minha aflição patética do morto
Que quer a tampa do caixão aberta;
Grito a minha surdez-mudez que escuta
A luta do dividendo,
Travada entre os vermes
Que vão roendo!
In “Líricas Portuguesas” - I Volume
Selecção, Prefácios e apresentação de Jorge de Sena
Edições 70 -1984
Políbio Gomes dos Santos
(1911-1939)
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