Segunda-feira, 19 de Agosto de 2019

Recordando... Políbio Gomes dos Santos

VOZ QUE ESCUTA

 

Chamam-me lá em baixo.

São as coisas que não puderam decorar-me:

As que ficaram a mirar-me longamente

E não acreditaram;

As que sem coração, no relâmpago do grito,

Não puderam colher-me.

Chamam-me lá em baixo,

Quase ao nível do mar, quase à beira do mar,

Onde a multidão formiga

Sem saber nadar.

Chamam-me lá em baixo

Onde tudo é vigoroso e opaco pelo dia adiante

E transparente e desgraçado e vil

Quando a noite vem, criança distraída,

Que debilmente apaga os traços brancos

Deste quadro negro - a Vida.

Chamam-me lá em baixo:

Voz de coisas, voz de luta.

É uma voz que estala e mansamente cala

E me escuta.

 

In “As Três Pessoas”

Portugália Editora

 

Políbio Gomes dos Santos

(1911-1939)

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Sexta-feira, 25 de Agosto de 2017

Recordando... Políbio Gomes dos Santos

GÉNESIS

 

O mundo existe desde que eu fui nado.

Tudo o mais é um… era uma vez

- A história que se contou.

 

No princípio criou-se o leite que mamei

E eu vi que era bom e chorei

Quando a fonte materna secou.

 

A terra era sem forma

E vazia;

Havia trevas no abismo.

 

E formou-se o chão

E amassou-se o pão

Que eu comi.

(Era este aquela esponja que eu mordia,

Que eu babava,

Que eu sujava,

Que uma gente andrajosa pedia).

 

E então se fez

A geração remota dos papões:

Nascera a esmola, o medo, a prece

E o rosto que empalidece…

E a rosa criou-se,

Desejada,

E logo o espinho,

A lágrima,

O sangue.

Este era vermelho e doce,

A lágrima doce, brilhante, salgada;

No espinho havia o gosto

Da vingança perfumada.

 

E eu vi que tudo era bom.

E fizeram-se os luminares,

Porque eu tinha olhos,

E o som fez-se de cantares

E de gemidos,

Porque eu tinha ouvidos.

Nasceram as águas

E os peixes das águas

E alguns seres viventes da terra

E as aves dos céus.

O homem que então era vagamente feito,

Dominou o homem, comprimiu-lhe o peito,

E fizeram-se as mágoas

E o adeus,

 

E eu vi que tudo era bom.

 

A mulher só mais tarde se fez:

Foi duma vez

Em que eu e ela nos somámos

E ficamos três.

 

Nisto e no mais se gastaram

Sete longuíssimos dias,

O mundo era feito

E embora por tudo e nada imperfeito,

Eu vi que era bom.

 

Acaba o mundo

Quando eu morrer.

Sim… será o fim!

Também tu deixas de existir,

No mesmo dia.

 

E o resto que seguir

É profecia.

 

In “As Três Pessoas”

Portugália Editora

 

Políbio Gomes dos Santos

(1911-1939)

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Quinta-feira, 25 de Fevereiro de 2016

Recordando... Políbio Gomes dos Santos

MEDITAÇÂO

 

O dia de hoje vem triste.

 

Eu penso que a terra dorme

Num grande caixão de chumbo;

São as pessoas os vermes,

Que vão roendo,

E as árvores são as flores

Que vão murchando

Sobre o cadáver imenso

Que me parece pequeno.

 

Também eu durmo este sono

E dormindo

Vou roendo o magro pomo

Que tombou do infinito,

No caixão,

Feito de chumbo e granito.

 

E roendo

A boca me sabe a mim

- Fica-me um travo de fim

De eternidade.

 

Neste silêncio,

Grito a minha ambição biológica do aborto

Que quis nascer completo

E veio feto

E torto...

 

Grito a minha aflição patética do morto

Que quer a tampa do caixão aberta;

Grito a minha surdez-mudez que escuta

A luta do dividendo,

Travada entre os vermes

Que vão roendo!

 

In “Líricas Portuguesas” - I Volume

Selecção, Prefácios e apresentação de Jorge de Sena

Edições 70 -1984

 

Políbio Gomes dos Santos

(1911-1939)

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