OS ESTIVADORES
Só eles suam mas só eles sabem
o preço de estar vivo sobre a terra
Só nessas mãos enormes é que cabem
as coisas mais reais que a vida encerra
Outros rirão e outros sonharão
podem outros roubar-lhes a alegria
mas a um deles é que chamo irmão
na vida que em seus gestos principia
Onde outrora houve o deus e houve a ninfa
eles são a moderna divindade
e o que antes era pura linfa
é o que sobra agora da cidade
Vede como alheios a tudo o resto
compram com o suor a claridade
e rasgam com a decisão do gesto
o muro oposto pela gravidade
Ode marítima é que chamo à ode
escrita ali sobre a pedra do cais
A natureza é certo muito pode
mas um homem de pé pode bem mais
In “Os Estivadores” 1974
Ruy Belo
(1933-1978)
A UM TI QUE EU INVENTEI
Pensar em ti é coisa delicada.
É um diluir de tinta espessa e farta
e o passá-la em finíssima aguada
com um pincel de marta.
Um pesar grãos de nada em mínima balança,
um armar de arames cauteloso e atento,
um proteger a chama contra o vento,
pentear cabelinhos de criança.
Um desembaraçar de linhas de costura,
um correr sobre lã que ninguém saiba e oiça,
um planar de gaivota como um lábio a sorrir.
Penso em ti com tamanha ternura
como se fosses vidro ou película de loiça
que apenas com o pensar te pudesses partir.
[Máquina de Fogo, 1961]
In “Poesia Completa - António Gedeão”
Edições João Sá da Costa, Lda.
António Gedeão **
(1906-1997)
** Pseudónimo de Rómulo Vasco da Gama de Carvalho
POEMA
Na tarde,
Aquela flor...
Na tarde,
Aquele mendigo...
Na tarde a sombra das minhas mãos
– Esperando que religião
E que abrigo?!
Na tarde,
A flor cinerária da tarde
A desfolhar-se na vida que me arde.
...Na tarde,
Aquele mendigo...
In “Ave de Silêncio”
Editora Portugália
António de Navarro
(1902-1980)
E DE NOVO A ARMADILHA DOS ABRAÇOS
E de novo a armadilha dos abraços.
E de novo o enredo das delícias.
O rouco da garganta, os pés descalços
a pele alucinada de carícias.
As preces, os segredos, as risadas
no altar esplendoroso das ofertas.
De novo beijo a beijo as madrugadas
de novo seio a seio as descobertas.
Alcandorada no teu corpo imenso
teço um colar de gritos e silêncios
a ecoar no som dos precipícios.
E tudo o que me dás eu te devolvo.
E fazemos de novo, sempre novo
o amor total dos deuses e dos bichos.
In "Poemas escolhidos e dispersos"
Roma Editora
Rosa Lobato de Faria
(1932-2010)
VISITAÇÃO
Que é do anjo das asas rutilantes
Com que lutou Jacob, na madrugada?
Que é desse outro, de falas sussurrantes,
Que surgiu a Maria, a fecundada,
Tão casta e sem pecado como dantes?
Que é da estrela, pela mão de Deus lançada
A guiar os incertos caminhantes
Ao colmo da cabana consagrada?
Onde estão os sinais que Deus envia?
Onde estão, que os procuro noite e dia
Sem nunca ver cumprido o meu desejo?
Não os vejo e não sei se eu, que os procuro,
Os não encontro porque sou impuro,
Ou sou impuro porque os não vejo.
(Livro III)
In “Poetas de Hoje”
Portugália Editora
Reinaldo Ferreira
(1922-1959)
UM SEGREDO
Meu pai tinha sandálias de vento
só agora o sei.
Tinha sandálias de vento
e isto nem sequer é uma maneira de dizer
andava por longe os olhos fugidos a expressão em
[nenhures
com as miraculosas instantaneidades que nos fazem
[estar em todos os sítios.
Andava por longe meu pai sonhando errando vadiando
mas toda a sua ausência era
o malogro de o ser
só agora o sei.
Andava por longe ou sentíamo-lo longe
vem dar no mesmo
e no entanto víamo-lo sempre
ali plantado de imobilidade absorta
no cepo de carvalho raiado de negro
a que o caruncho comera o miolo
como as lagartas esvaziam as maçãs
estranhamente quieto murcho resignado
no seu estranho vadiar
os olhos aguados numa tristeza que hoje me dói
como um apelo perdido uma coragem abortada.
Ausência era tão de mágoa urdida tão de fracasso
[tingida
ausência era
altiva e desolada altiva e triste sobretudo triste
tristeza sim tristeza solene e irremediada
só agora o sei.
Às vezes parecia-me uma águia que atravessa os ares
sulco azul
que nada distingue do azul onde foi sulcado
e por isso nem é águia nem ao menos
o que do seu voo resta para que
o sonho se faça real.
Meu pai era um homem com as nostalgias
do que nunca acontecera e isso minava-o víscera a
[víscera
como as tais lagartas esfarelam as maçãs
e então sei-o agora calçava as ágeis sandálias
miraculosamente leves soltas imaginosas
indo de acaso em acaso de astro em astro
eram de vento as suas sandálias fabulosas
levando-o aonde mais ninguém poderia chegar.
Os outros não o sabiam nem eu o sabia
só o víamos sentado no cepo velho
raiado de negro como uma estrela fossilizada
por isso tudo era para ele mais irremediável e triste
sei-o agora tarde de mais
tarde de mais é uma dor de remorso
que me consome víscera a víscera
como as tais lagartas esfarelam as maçãs.
Mas de qualquer maneira existe um segredo
de que ambos partilhamos
ciosamente avaramente indecifradamente
como os astutos conspiradores
que fazem do seu segredo
um mágico tesouro inviolado.
Um segredo simples:
o que sentiste pai
sinto-o eu agora por ambos
sinto-o por ti
sinto-o por mim.
Ainda que por ele devorados.
In “Nome Para Uma Casa”
Livraria Bertrand
Fernando Namora
(1919-1989)
NATAL
Na quadra do Natal
Neste nosso Portugal
Em todo o mundo também
É só amor e carinho
Ajuda-se o pobrezinho
Não se esquece ninguém
Para familiares e amigos
Os novos e os antigos
Dão-se prendas e presentes
Mas esquece-se em seguida
Continua a ser esquecida
As pessoas doentes
É assim em toda a terra
Fazem-se tréguas na guerra
Que acabam no outro dia
Volta o ódio e a vingança
Acabou-se a esperança
Terminou a alegria
Ó quanta hipocrisia
E alguma cobardia
No pensamento humano
Carinho e amor no Natal
Mas depois continua o mal
O resto de todo o ano
Amar como Jesus amou
Sonhar como ele sonhou
Ajudar o nosso irmão
Diga-mos não à guerra
Para que tenhamos paz na terra
Sem sacrifício nem opressão
O Natal deveria ser
E ninguém se esquecer
Todos os dias do ano
Para sempre nos amar
Toda a gente se respeitar
Nisto não há engano
In “União dos Escritores e Artistas
Transmontanos e Altodurienses – UNEARTA”
Revista mensal - N.º 13 - Ano 2 - Janeiro 2003
Norberto Martins
(Poeta popular)
SERÁ QUE PERCEBE
Será que percebe, então,
o sopro leve
que passa breve
a rondar p'la escuridão?
Por si roçando
de quando em quando
como carícia de mão;
depois, baixinho,
grave, mansinho,
num múrmurio modulado
e segredante
de voz distante
de algo fluído, alado,
nunca visível,
só perceptível
e presente em todo o lado
como louco vagabundo,
ora dançando
ou sussurrando,
a girar livro p'lo mundo
In "Este Sol que me Aquece"
Armando Vieira de Barros
(N.1929)
O PRAZER E O DESGOSTO
– Quem és tu, homem lindo e poderoso,
que a rir passas assim tão apressado,
deitando-me um olhar tão desdenhoso?
– Sou o prazer e vou p’ra outro lado!
– E tu homem descalço e esfarrapado,
que amargurado vens a caminhar.
Fitando-me amoroso e apaixonado?
– Sou o desgosto e venho p’ra o teu lar!
(Saudade)
In “Poetisas de Hoje”
Editora Empreza do Díarío de Notícias - 1931
Beatriz Arnut
(1892-1958)
AS PROSTITUTAS
Naquele tempo,
elas desciam à vila, as prostitutas –
a única saída,
exactíssima resposta para a nossa
angústia seminal acumulada.
Vinham de Vale da Porca, ou outra
terra assim pasmada.
Traziam na cabeça lenços garridos,
na carteira de mão a triste história:
a sedução primária, a miséria espessa,
mas jamais o vício mercenário.
Nas eiras recebiam as nossas águas,
de permeio plantados como reis.
Procuravam lisonjeiras acertar
seu êxtase fingido com o nosso.
Beijavam-nos, diziam: tão novinho!
Suportavam-nos insultos e arremessos.
Com a mão experiente (mas não habituada)
guiavam-nos na bela, impreterível,
urgente aprendizagem,
concediam-nos crédito e carinho –
as tão castas mulheres,
as prostitutas.
Algures a Nordeste (1974)
In “Artes Marginais”
Antologia poética
Guimarães Editores -1998
A.M. Pires Cabral
(N.1941)
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