CAI A CHUVA ABANDONADA
Cai a chuva abandonada
à minha melancolia,
a melancolia do nada
que é tudo o que em nós se cria.
Memória estranha de outrora
não a sei e está presente.
Em mim por si se demora
e nada em mim a consente
do que me fala à razão.
Mas a razão é limite
do que tem ocasião
de negar o que me fite
de onde é a minha mansão
que é mansão no sem-limite.
Ao longe e ao alto é que estou
e só daí é que sou.
In “Conta-Corrente 1”
Livraria Bertrand - 1981
Vergílio Ferreira
(1916-1996)
A CIDADE EQUESTRE
A cidade equestre
No rio mergulha
Seus cascos de granito
E sobe
A galope
Encosta arriba
Num salto a prumo
(Lá onde o casario morre)
Upa!
É uma torre
Torre de pedras e nuvem
De pássaros de fogo
De corpo de mulher
Torre de tudo e de quanto
O sonho
A palavra o canto
Pode e quer
Linhas do Trópico - 1977
In “Obra Completa”
Campo das Letras
Luís Veiga Leitão **
(1912-1987)
** Pseudónimo de Luís Maria Leitão
COISAS QUE NÃO HÁ QUE HÁ
Uma coisa que me põe triste
é que não existe o que não existe.
(Se é que não existe, e isto é que existe!)
Há tantas coisas bonitas que não há:
coisas que não há, gente que não há,
bichos que já ouve e já não há,
livros por ler, coisas por ver,
feitos desfeitos, outros feitos por fazer,
pessoas tão boas ainda por nascer
e outras que morreram há tanto tempo!
Tantas lembranças de que não me lembro,
Sítios que não sei, invenções que não invento,
gente de vidro e de vento, países por achar,
paisagens, plantas, jardins de ar,
tudo o que eu nem posso imaginar
porque se o imaginasse já existia
embora num lugar onde só eu ia...
In “O pássaro da cabeça e mais versos para crianças”
Assírio & Alvim
Manuel António Pina
(1943-2012)
DUPLO IMPÉRIO
Atravesso as pontes mas
(o que é incompreensível)
não atravesso os rios,
preso como uma seta
nos efeitos precários da vontade.
Apenas tenho esta contemplação
das copas das árvores
e dos seus prenúncios celestes,
mas não chego a desfazer
as flores brancas e amarelas
que se desprendem.
As estações não se conhecem,
como lhes fora ordenado,
mas tecem o duplo império
do amor e da obscuridade. "
In "Duplo Império"
Pedro Mexia
(N.1972)
ATENTO MEU OLHAR SE REVIGORA
Atento meu olhar se revigora no cais sempre aberto
em que discorro. E sem o látego de impassíveis fantasias
ou de crenças usadas como socorro. À palavra me vou
dando no concreto que percorro. Observo ruas, rostos,
para lá de logros e madrugadas enganosas e sentado
no café insisto leituras que tento copiosas.
Mas se acaso, num inverno que já pressinto, relâmpagos
e trovões falsearem tudo o que vi, imune voltarei ao mesmo
tempo – indisfarçável véspera em que vivi. Atento meu olhar
se revigora neste cais, onde toda a cidade desfila eu eu,
sem máscara nem embuste, indago. Em cuidado me gostaria
para sempre, mas tal não posso neste ermo fustigado por duros
vendavais e monótona bonança. Que me fique a invendável
liberdade, listada a fogo com ferretes de esperança.
In “A irresistível voz de Ionatos”
Editora Labirinto
Victor Oliveira Mateus
(N.1952)
CÂNTICO AO AMANHECER
Eu já não sou aquele frágil ser
que morria de angústia e desespero
por ir vogando, vogando sem rumo,
vogando, vogando na corrente da vida
para a morte…
Chocada,
magoada,
sensitiva…
Que formosura na sombra do mundo amanheceu,
que perfume de primavera estua nos caminhos,
que tudo se transforma
e acorda em sobressalto!
Eu dei as minhas mãos às mãos que vi estendidas,
juntei a minha voz ao cântico do amanhecer,
que reboa comovidamente
pleno de esperança e juventude,
e confundi meu coração
com os de todos os irmãos da minha humanidade.
E o frágil ser,
Chocado, magoado, sensitivo,
Morreu…
E só então pude exclamar:
Vida, vida, como eu te atraiçoava,
esperando tudo de ti
sem nada de mim te dar!
Na sombra do mundo estua a primavera
como sinal de um cântico que amanheceu!
In “Poemas da Hora Presente”
Lília da Fonseca
(1916-1991)
RECORDAÇÕES
Nenhum vestígio
Nenhuma noite impura
Nenhum país de lume
Nenhuma serra ali.
A tua ausência é tão funda
Que não regressa a ti.
In “Coração dos relógios”
Editora Pergaminho
Maria Azenha
(N.1945)
DESLIZAR PARA O POEMA E FICAR DE PÉ
Deslizar para o poema e ficar de pé,
imóvel sobre as imagens unicolores
dos cansaços,
deslembrados frutos e festas
de junhos calcinados em dispersão
pelas mãos. E os ouvidos atentos
ao murmúrio crescente da noite.
Não fosse oásis o teu olhar,
Cama, teus braços de amparar,
almofada de penas o teu peito.
Não fosses igual a um poema que
nos conduz ao carmim da tarde. Suavemente.
À casa onde se retoma pelos sentidos
na barca perene da memória,
a mesma de ontem, de hoje,
de amanhã ...
Não se ensombre o mar em olhos fatigados.
In “Garças”
Poética Edições
Lídia Borges **
(N.1956)
** Pseudónimo de Olívia Maria Barbosa Guimarães Marques
QUANDO ME BEIJAS
Quando me beijas, sinto o teu olhar
Por vezes vago, estranho, indiferente,
E até já fui forçada a reparar
Que me não olhas franca, lealmente.
Qualquer coisa tu tens p’ra me ocultar
Uma razão existe, certamente.
Repara amor, como eu, p’ra te beijar
Olho bem os teus olhos frente a frente.
E quando emfim, as nossas duas bocas
Se unem famintas como duas loucas
E vêjo então o quanto me desejas,
Fico absorta e penso entristecida,
Em quem será essa desconhecida
Que tu estás a beijar, quando me beijas.
(Intimidade)
In “Poetisas de Hoje”
Editora Empreza do Díarío de Notícias - 1931
Alice Ogando
(1900-1981)
A ESTÁTUA
O teu corpo branco e esguio
Prendeu todo o meu sentido...
Sonho que pela noite, altas horas,
Aqueces o mármore frio
Do alvo peito entumecido...
E quantas vezes pela escuridão
A arder na febre de um delírio,
Os olhos roxos como um lírio
Venho espreitar os gestos que eu sonhei...
- Sinto os rumores duma convulsão,
A confessar tudo que eu cismei
Ó Vénus sensual!
Pecado mortal do meu pensamento!
Tens nos seios de bicos acerados,
Num tormento,
A singular razão dos meus cuidados
In "Noite luarenta" 1922
Judith Teixeira **
(1880-1959)
** Pseudónimo de Judite dos Reis Ramos Teixeira
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