AVES, FLORES, SAUDADES
Sol a sol, desde a serra até ao mar,
Das pegas-rabilongas às gaivotas,
A orquestra alada, requintado as notas,
De nascente a poente é só tocar:
Ocarinas em fila – terras-cottas
Em beirais de telhado; à beira-mar,
Flautas de abibes; harpas de luar
Em garças ribeirinhas, nas marnotas;
Ao longo das ribeiras são as filas
Dos violinos – sílvias e fringilas –
Violetas, violas-trissonoras
E no alto do céu, flamas em jogo,
A regê-los, o Pássaro de Fogo
Peneira as grandes asas criadoras.
In “Concerto ao ar livre”
Emiliano da Costa
(1884-1968)
SENHOR, EU VIVO COITADA
Senhor, eu vivo coitada
vida, des quando vos non vi:
mais, pois vós queredes assi,
por Deus, senhor ben talhada,
querede-vos de mim doer
ou ar leixade-m'ir morrer.
Vós sodes tan poderosa
de min que meu mal e meu ben
en vós é todo; [e] por en,
por Deus, mha senhor fremosa,
querede-vos de mim doer
ou ar leixade-m'ir morrer.
Eu vivo por vós tal vida
que nunca estes olhos meus
dormen, mnha senhor; e, por Deus,
que vos fez de ben comprida,
querede-vos de mim doer
ou ar leixade-m'ir morrer.
Ca, senhor, todo m' é prazer
quant' i vós quiserdes fazer.
(Mantém a grafia de origem)
In "Cancioneiro da Vaticana"
Dom Dinis
(1261-1325)
INVERSÕES
Com o Outono
uma panóplia de aves
marchou inversamente
a mim.
Eu que sempre gostei
dos inversos das coisas,
começo sempre pelo
avesso do fim.
É neste rigor
de espelhos
que me revejo.
Um inverso de alma,
uma espécie
de mim
ao contrário.
In “Geografias Dispersas”
Editora Edita-Me
Alexandra Malheiro
(N.1972)
UM SIMPLES PENSAMENTO
É a música, este romper do escuro.
Vem de longe, certamente doutros dias,
doutros lugares. Talvez tenha sido
a semente de um choupo, o riso
de uma criança, o pulo de um pardal.
Qualquer coisa em que ninguém
sequer reparou, que deixou de ser
para se tornar melodia. Trazida
por um vento pequeno, um sopro,
ou pouco mais, para tua alegria.
E agora demora-se, este sol materno,
fica comigo o resto dos dias.
Como o lume, ao chegar o inverno.
In “Os Sulcos da Sede”
Quasi Edições
Eugénio de Andrade **
(1923-2005)
** Pseudónimo de José Fontinhas
NATAL
Menino Jesus feliz
Que não cresceste
Nestes oitenta anos!
Que não tiveste
Os desenganos
Que eu tive
De ser homem,
E continuas criança
Nos meus versos
De saudade
Do presépio
Em que também nasci,
E onde me vejo sempre igual a ti.”
In “Diário XV”
Coimbra Editora
Miguel Torga **
(1907-1995)
** Pseudónimo de Adolfo Correia da Rocha
ECO
Vagas são as promessas e ao longe,
muito longe, uma estrela.
Cruel foi sempre o seu fulgor:
sonâmbulas cidades, ruas íngremes,
passos que dei sem onde.
Era esse o meu reino, e era talvez essa
a voz da própria lua.
Aí ficou gravada a minha sede.
Aí deixei que o fogo me beijasse
pela primeira vez.
Agora tenho as mãos vazias,
regresso e sei que nada me pertence
– nenhum gesto do céu ou da terra.
Apenas o rumor de breves sombras
e um nome já incerto que por mágoa
não consigo esquecer.
In “Poemas Escolhidos”
Publicações Dom Quixote
Fernando Pinto do Amaral
(N.1966)
AMAR TEUS OLHOS
Podia com teus olhos
escrever a palavra mar.
Podia com teus olhos
escrever a palavra amar
não fossem amor já teus olhos.
Podia em teus olhos navegar
conjugar os verbos dar e receber.
Podia com teus olhos
escrever o verbo semear
e ser tua pele
a terra de nascer poema.
Podia com teus olhos escrever
a palavra além ou aqui
ou a palavra luar,
recolher-me em teus olhos de lua
só teus olhos amar.
Podia em teus olhos perder-me
não fossem, amor, teus olhos,
o tempo de achar-me.
In "Lavra de Amor"
Hugin Editores
Carlos Melo Santos
(N. 1956)
CONTIGO
Vivo a noite contigo
e juntos andamos
em quietude de seda.
Pele e vontade
corpo e verdade
um sal de ti.
Vivo a noite contigo
e vou pela quentura
do teu peito adormecido
até ao fim das estrelas.
In “Azul como o silêncio”
Chiado Editora
Edgardo Xavier
(N.1946)
ROMANCE DO RIO DOURO
Rio Douro, rio Douro,
que vais tu dizer ao mar
com cem palavras ferindo
um ovo que não se abre?
Teus dedos de névoa crescem,
desfibram-se pelo vale;
e uma rosa angustiada,
na areia do areal.
Rio Douro, rosa de água,
que tens tu para contar?
Rio, não fales de nós
ao senhor rei que é o mar:
ir falar a certa gente
é o mesmo que não falar.
Fala connosco, se és nosso,
revela o ovo da paz,
pondo-nos dentro da alma
as cidades de luar,
o mel dos favos da aurora,
laranjas do laranjal,
a doce força dos robles
cheios de sol e de sal,
que por mais que o vento vente,
resistem ao vendaval.
In "Os Homens Cantam a Nordeste"
Editora Nova Realidade
António Cabral
(1931-2007)
RESSURREIÇÃO
Que tristeza entristece a flor das águas?
Ó sereias do Mar, peixes humanos,
serão saudades vossas?
Ó sereias do Mar, que havia dantes,
quando os homens sabiam deslumbrar-se .. .
Se haverá Primavera no país
das algas, das anémonas...
Inútil primavera!... Quem viria
(as sereias morreram...) enfeitar-se
com as rosas marinhas?
Mas da noite do Mar eis se levantam
vultos de luz, etéreas esculturas.
Serão puros espíritos, mas sinto-as,
sua pele contra a minha, no meu corpo.
E um perfume de carne e maresia
me toma por inteiro, me transtorna
– casto, insistente, virgem, feminino.
Pela noite do Mar, inesperadas,
surgem vivas do mito que as encanta,
surgem, desencantadas, as sereias
– luas de carne enluarando a noite.
Abre-se a flor das águas como um lótus.
Conchinhas, algas, búzios, estremece-os
um frémito de gozo e de alegria.
Dançam de roda, infantilmente, os p eixes.
E as mãos do Poeta afogam-se de anémonas
primaverais, misteriosas, dignas
elas só do afago das sereias .. .
Arrábida, 3 e 4/IV/1950
(Poesia Inédita)
In “ÁRVORE ”
Folhas de Poesia
Direcção e Edição de António Luís Moita, António Ramos Rosa,
José Terra, Luís Amaro, Raul de Carvalho
2.° Fascículo - Inverno ele 1951-52
Pág. 85/86
Sebastião da Gama
(1924-1952)
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