AS PALAVRAS TÊM ROSTO…
As palavras têm rosto: ou de silêncio ou de sangue.
O cavalo que nos domina é uma sombra apenas.
Sem sílabas de água, avança até ao outono.
Uma árvore estende os ramos. As nuvens subsistem.
O cavalo é uma hipótese, uma paixão constante
Na rede das suas veias corre um sangue de tempo,
uma árvore se desloca com a alegria das folhas.
Árvore e cavalo transformam-se num só ente real.
Eu que acaricio a árvore sinto a força tenaz
da testa do cavalo, a eternidade férrea,
o ser em explosão e eu tão leve folha
na sombra deste ser animal vegetal
busco a razão perfeita, a humildade estática,
a força vertical de ser quem sou e o ar.
In "Círculo Aberto"
Ed. Caminho
António Ramos Rosa
(1924-2013)
CANÇÃO
Tu eras neve.
Branca neve acariciada.
Lágrima e jasmim
no limiar da madrugada.
Tu eras água.
Água do mar se te beijava.
Alta torre, alma, navio,
adeus que não começa nem acaba.
Eras o fruto
nos meus dedos a tremer.
Podíamos cantar
ou voar, podíamos morrer.
Mas do nome
que maio decorou,
nem a cor
nem o gosto me ficou.
In “As palavras Interditas - Até Amanhã”
Assírio & Alvim
Eugénio de Andrade **
(1923-2005)
** Pseudónimo de José Fontinhas
O INVERNO
Sabíamos do mar sem o sabermos,
do mar dos mapas, da cor azul do mar,
dos naufrágios no mar,
do sol solto no mar.
Sabíamos do mar sem o sentirmos
nos poros dilatados pelo mar,
o verdejante mar escalando as montanhas
tão bruscas como o sal.
Sabíamos do mar em sinuosos sinos
assinalando a noite
com corações arrepiados,
abertos como mãos
sulcadas de cabelos e molhadas
de rugas e escamas.
Sabíamos do mar em signos, símbolos,
tropos e metáforas.
Sabíamos do mar?
Sabíamos o mar.
Sabíamos a mar
In “A Condição Reflexa” (Poemas, 1952-1982)
Imprensa Nacional-Casa da Moeda – Lisboa – 1990
António Rebordão Navarro
(1933-2015)
DIAS MELHORES
A mulher espera as noites e também os dias,
esperta o lume enquanto, esperta a espera.
Há umas quantas coisas que a prendem, coisas
que arrecadou para a vida e já não servem.
Quem serve é ela e serve a Deus desfiando o rosário
pelos que já lá estão.
Por aqui vai-se indo, vai-se levando a vida
para o outro lado enquanto se esperam dias melhores,
dias mecânicos, a labuta dos músculos, a cabeça em paz
e a noite cansada, os pensamentos cansados,
o sofrimento cansado só quer estender o corpo
até de manhã. Quando mal nunca pior,
o café quente, o pão acabado de fazer
como se fosse cedo e as mãos na sua azáfama
pudessem fazer os dias gloriosos as noites luminosas
com que sonhou e já não servem. Agora só a espera
e as coisas que foi arrecadando para a morte.
In “Da Alma e dos Espíritos Animais”
Editora Campo das Letras
Rosa Alice Branco
(N.1950)
LEVA-LHE AS PALAVRAS O PENSAMENTO
Leva-lhe as palavras o pensamento, posto
nos vitrais sangrentos da catedral, quando
os lábios de Laura rezam. Na solene
fixidez do silêncio, entre as pedras erectas,
vindas do sol, as orações de Laura ateiam
o incêndio, devoram o coração
de Francesco. Dentro, em algum canto do coro,
cantam as musas. Sob o ruído atroante
das naves ao céu, na solene fixidez
do silêncio, vão as palavras fugindo,
linhas de luz e noite no novo vitral
de cores lunares, desenhado nas mãos
rígidas do poeta. O canto poderoso
repete a eterna impiedade do amor.
In “Nocturnidade”
Campo das Letras – 1999
Orlando Neves
(1935 -2005)
EIS-ME
Eis-me
Tendo-me despido de todos os meus mantos
Tendo-me separado de adivinhos mágicos e deuses
Para ficar sozinha ante o silêncio
Ante o silêncio e o esplendor da tua face
Mas tu és de todos os ausentes o ausente
Nem o teu ombro me apoia nem a tua mão me toca
O meu coração desce as escadas do tempo
[em que não moras
E o teu encontro
São planícies e planícies de silêncio
Escura é a noite
Escura e transparente
Mas o teu rosto está para além do tempo opaco
E eu não habito os jardins do teu silêncio
Porque tu és de todos os ausentes o ausente
In “Livro Sexto”
Assírio & Alvim
Sophia de Mello Breyner Andresen
(1919-2004)
ÚLTIMO POEMA DO AMOR AUSENTE
Todo o corpo lhes dói de acertar os relógios
De momento a momento às vantagens do tempo
Meu amor meu amor tem por vezes o gosto
Do veneno sorvido ao desabar das pontes
A mais frágil aragem os confunde
O espaço aberto enreda-lhes os passos
O convívio da vida esboroa as palavras
A liberdade é um peso enorme nos seus ombros
«Tudo quando perdi na violência do tempo
Veio hoje até mim como o espinho da flor
Como o operário morto entre o ferro e o cimento
Da construção do amor
Foi um lento e incógnito perfume
Foi um lago sem margens intransposto
Foi uma pedra vermelha de lume
O mais belo sorrir de desgosto»
In “Poesia dos Dias Úteis”
Publicações Europa-América
Vasco Costa Marques
(1928-2006)
ENLEIOS
Que direi de enleios,
galanteios ternos
prematuro voo
da miragem tonta?
Onde estão represos
os murmúrios de água
deslizando lenta
no dossel dos montes?
Já não sinto as aves
nem sequer as penas
adejando soltas.
Quanto às águas sei
ir morrer de sede
mesmo vendo as fontes.
In “Périplo”
Edições Húmus - 2009
Edgar Carneiro
(1913-2011)
MUDANÇA DE ESTAÇÃO
Para te manteres vivo - todas as manhãs
arrumas a casa sacodes tapetes limpas o pó e
o mesmo fazes com a alma - puxas-lhe brilho
regas o coração e o grande feto verde-granulado
deixas o verão deslizar de mansinho
para o cobre luminoso do outono e
às primeiras chuvadas recomeças a escrever
como se em ti fertilizasses uma terra generosa
cansada de pousio - uma terra
necessitada de águas de sons de afectos para
intensificar o esplendor do teu firmamento
passa um bando de andorinhões rente à janela
sobrevoam o rosto que surge do mar - crepúsculo
donde se soltaram as abelhas incompreensíveis
da memória
luzeiros marinhos sobre a pele - peixes
que se enforcam com a corda de noctilucos
estendida nesta mudança de estação
In “Horto de incêndio”
Assírio & Alvim
Al Berto **
(1848-1997)
** Pseudónimo de Alberto Raposo Pidwell Tavares
HYMNO Á ALEGRIA
(A Carlos Malheiro Dias)
Tenho-a visto passar, cantando, á minha porta,
E ás vezes, bruscamente, invadir o meu lar,
Sentar-se á minha mesa, e a sorrir, meia morta,
Deitar-se no meu leito e o meu somno embalar.
Tumultuosa, nos seus caprichos desenvoltos,
Quasi meiga, apesar do seu riso constante,
D'olhos a arder, labios em flor, cabellos soltos,
A um tempo é cortesã, deusa ingenua ou bachante...
Quando ella passa, a luz dos seus olhos deslumbra;
Tem como o sol d'inverno um brilho encantador;
Mas o brilho é fugaz, – scintilla na penumbra,
Sem que d'elle irradie um facho creador.
Quando menos se espera, irrompe d'improviso;
Mas foge-nos tambem com uma presteza egual;
E d'ella apenas fica um pállido sorriso
Traduzindo o desdem d'uma illusão banal.
Onda mansa que só á superficie corre,
Toda a alegria é vã; só a Dor é fecunda!
A Dor é a Inspiração, louro que nunca morre,
Se em nós crava a raiz exhaustiva e profunda!
No entanto, eu te saudo e louvo, hora dourada,
Em que a Alegria vem extinguir, de surpresa,
Como chuva a cair numa planta abrasada,
A fornalha em que a Dor se transmuta em Belleza!
Pensar, é certo, eleva o espirito mais alto;
Soffrer torna melhor o coração; depura
Como um crysol: a chispa irrompe do basalto,
Sae o oiro em fusão da escoria mais impura.
A Alegria é fallaz; só quem soffre não erra,
Se a Dor o eleva a Deus, na palavra que o louve;
A Alma, na oração, desprende-se da terra;
Jamais o homem é vão deante de Deus que o ouve!
E comtudo, – illusão! – basta que ella sorria,
Basta vê-la de longe, um momento, a acenar,
Vamos logo em tropel, no capricho do dia,
Como ébrios, Evohé! atrás d'ella a cantar!
Mas se ella, de repente, ao nosso olhar se furta,
Todo o seu brilho é pó que anda no sol disperso;
A Alegria perfeita é uma aurora tão curta,
Que mal chega a doirar as cortinas do berço.
Ás vezes, essa luz de tão fragil encanto,
Vem ainda banhar certas horas da Vida,
Como um iris de paz numa névoa de pranto,
Crepitação, fulgor d'uma estrella perdida.
Então, no resplendor d'essa aurora bemdita,
Toma corpo a illusão, e sem áncias, sem penas,
O espirito remoça, o coração palpita,
Seja a nossa alma embora uma saudade apenas!
Mas ephémera ou vã, a Alegria... que importa?
Deusa ingenua ou bachante, o seu riso clemente,
Quando, mesmo de longe, echôa á nossa porta,
Deixa em louco alvoroço o coração da gente!
Momentánea ou fallaz, é sempre um dom divino,
Sol que um instante vem a nossa alma aquecer...
Podesse eu celebrar teu louvor no meu Hymno!
Momentáneo, fallaz encanto de viver!
O teu sorriso enxuga o pranto que choramos,
E eu não sei traduzir a ventura que exprimes!
Nesta sentimental lingua que nós falamos,
Só a Dor e a Paixão têm accordes sublimes!
(Mantem a grafia original)
In “Sol de Inverno”
António Feijó
(1859-1917)
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