OS AMIGOS
Quando se abrem os portões das grandes casas
e os amigos se entreolham antes de recolherem
aos respectivos túmulos
todos tão estranhamente corteses e finais
tão esquecidos de tudo o que um dia prometeram
tão emudecidos e gratos
tão suspensos de uma sede que os tornou irredutíveis
com os seus cabelos verdes e revoltos
a roupa que o corpo ainda segrega
por ter frio
por ser sempre de noite.
Amigos tímidos como certos dias de chuva
com os seus passos de borracha
os seus velhos sobretudos
as suas vozes em coro.
Os rostos inclinados sobre a cidade limpa
onde os vejo escrever, aplicadamente,
sobre o tampo metálico de uma mesa de café
a uma janela que dá sobre o Tejo
a ver passar o mundo.
Amigos pensativos como nuvens baixas,
como janelas abertas sobre praias escuras,
heras, campos de heras,
campos de ossos.
In “Eu vi jardins no inferno”
Palimpsesto Editora - 2010
António Ladeira
(N. 1966)
OS AMIGOS
no regresso encontrei aqueles
que haviam estendido o sedento corpo
sobre infindáveis areias
tinham os gestos lentos das feras amansadas
e o mar iluminava-lhes as máscaras
esculpidas pelo dedo errante da noite
prendiam sóis nos cabelos entrançados
lentamente
moldavam o rosto lívido como um osso
mas estavam vivos quando lhes toquei
depois
a solidão transformou-os de novo em dor
e nenhum quis pernoitar na respiração
do lume
ofereci-lhes mel e ensinei-os a escutar
a flor que murcha no estremecer da luz
levei-os comigo
até onde o perfume insensato de um poema
os transmudou em remota e resignada ausência
(Sete Poemas do Regresso de Lázaro)
In “O medo”
Contexto, Editora
Al Berto **
1948 – 1997
** Pseudónimo de Alberto Raposo Pidwell Tavares
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