LEVA-LHE AS PALAVRAS O PENSAMENTO
Leva-lhe as palavras o pensamento, posto
nos vitrais sangrentos da catedral, quando
os lábios de Laura rezam. Na solene
fixidez do silêncio, entre as pedras erectas,
vindas do sol, as orações de Laura ateiam
o incêndio, devoram o coração
de Francesco. Dentro, em algum canto do coro,
cantam as musas. Sob o ruído atroante
das naves ao céu, na solene fixidez
do silêncio, vão as palavras fugindo,
linhas de luz e noite no novo vitral
de cores lunares, desenhado nas mãos
rígidas do poeta. O canto poderoso
repete a eterna impiedade do amor.
In “Nocturnidade”
Campo das Letras – 1999
Orlando Neves
(1935 -2005)
MUITAS CIDADES VIU PELA ÚLTIMA VEZ
Muitas cidades viu pela última vez, mares
que sulcou, sentimentos que sentiu,
jardins onde esteve, bosques onde sonhou,
amores que recorda, ruas que pisou,
poemas que o possuíram, neves onde
se corroeu, corpos de que foi parte, céus
que desabaram, dores que sofreu, palavras
jamais lembradas, alegrias que perdeu
– fragmentos de vidas irrepetíveis, como
esses segundos que fogem quando fulgem
os olhos de Laura. Só o trabalho do corpo
rompe o hímen do inconsolável tempo perdido.
Reaprende Francesco a sede do instante, a vida
rápida na memória dos olhos de Laura.
In “Nocturnidade”
Campo das Letras – 1999
Orlando Neves
(1935 -2005)
OUTRA MADRUGADA
Outra madrugada, outra palavra, outras águas
que, ora violentas, ora serenas, ora
sedentas, como inconstantes graves amantes
descem aos olhos de Laura a violá-los, outros
silêncios, outros lumes, outros medos que ora
glaciais, ora cálidos, ora instáveis,
entre ruínas, delírios e desafios
lançam sobre os olhos a ténue gaze
que os vai delindo e a escurecê-los ousam,
sufocando-lhes, impiedosa, a amplidão
do verde no plaino áspero do tempo, somente os
mudarão em vasos de ouro eterno, acendendo
em Francesco outra maresia, nova seiva,
nova lira, outra ceifa, outra rosa do dia.
In “Nocturnidade”
Campo das Letras – 1999
Orlando Neves
1935 – 2005
VEM E DIZ
Vem e diz. Que enorme casa resplandece
de bronze, que vento destrói as belas
lavouras, quem entende a fala das perdizes,
ungidas da luz matinal.
Vem e diz. Por um tempo de nada, a juventude
banha a nudez do rosto e nos deleita
dos amáveis dons da idade. Em minha casa amada,
sou uma tâmara redonda e madura.
Vem e diz. Quem nos ensina o caminho
da cidade, que pão amassado é arma excelente,
pendular e lenta, da agonia, que distância
nos isola dos homens de fala dotados.
Vem e diz. Não invejo os deuses nem as suas
acções, não mudo o pranto em louvor, nem
das brisas oceânicas provém o passo
da fortuna, areia fugida à contagem.
Vem e diz. Que sombra de sonho é o
homem, o que de muitos veio para ser único,
o que, ornado de ouro e alado, em dez
medidas de água sucumbe, em bolor se devora.
Vem e diz. Bebamos
In “Lamentação em Cáucaso”
Património XXI – 1991
Orlando Neves
1935 – 2005
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