O POETA E A MORTE
– Que sonhas tu, Poeta vagabundo?
“Acaso a construção de novo mundo?”
Olhei... Horror!..., a Morte estava ali...
E da cabeça aos pés, Jesus!, tremi:
Eu nunca vira espectro semelhante,
Um esqueleto assim, de mim diante.
– Não tremas... Deixa lá... Recobra a calma...
“É cedo ainda pra levar-te a alma!
“De mais a mais nem trago a foice adunca
“Que trago sempre e não perdoa nunca:
“Deixei-a nos Infernos, pra conserto,
“Pois amolada quer e o cabo aperto.
“Também, depois, em vindo lá da forja,
“Ai da seara humana, dessa corja!...”
Já num penedo vai sentar-se quando
Seus olhos, como brasas coruscando,
Me atraem para si... Lhe caio ao lado,
Autómato servil, inanimado...
– Põe-te a desejo... Vá!, despede o medo...
“Eu te prometo não levar tão cedo!”
– Ó Morte, irmã da Noite e da Tristeza,
Mas hás-de então levar-me?!
– Com certeza!
“A onda, que desfaz a rocha dura,
“Terá também um dia sepultura.”
E num sorriso cínico, de orgulho,
Rangeu as maxilas com barulho:
– Que pode a onda comparada a mim ?,
“O raio?, o vento?, quanto existe, enfim,
“Capaz de contrapor-se altivo e forte?...
“Um sopro que lhes dê, lhes dou a morte.”
– Se tem de ser, ó Morte, a despedida...,
Se tenho de morrer... que importa a vida?!
Nas veias sinto cólera selvagem,
Requintes de pirata na abordagem,
Um ódio sem igual, jamais sentido,
Capaz da voz mudar-me num rugido!
... Ó monstro!, bem maior que Satanás...
Detém-te aí! Cobarde, não te vás!
De mais eu sei o teu poder na Terra,
E o de teus filhos, Fome, Peste, Guerra...
De mais eu sei o mal que tendes feito!
E rias inda há pouco satisfeito...
Herodes! Tu nem poupas as crianças...
Que mal te fazem, para tais vinganças?!
Estoira a Morte a rir, num rir cruel,
O rir, talvez, da cobra-cascavel...
A rir, a rir, ela estremece tanto
Que até lhe cai do ombro o negro manto
(No chão onde tombou, gelado crepe,
Jamais erva cresceu – tornou-se estepe!).
Após se rir, com ar de quem não pensa,
Magnânima também, vingar a ofensa,
Desprende a voz:
– Poeta visionário
“Tens de levar a cruz ao teu calvário
“E, lá, de Jesus Cristo à semelhança,
“Serei Longuinhos a espetar-te a lança!
“Quanto no mundo existe, vive, sente,
“Há-de sofrer o espinho de meu dente!
“O ferro, o próprio ferro se oxida:
“Sou eu, ferrugem, que lhe tiro a vida.
“Meu pobre sonhador! Porque deliras?
“Blasfemas... Nada mais. Acalma as iras.
“É certo que sou má e que sou dura
“Mas só, vê tu!, para vos dar ventura:
“O mundo sem a morte o que seria?
“Hospício de macróbios hoje em dia,
“Macróbios, sim, antediluvianos
“Com mais de mil milhões de negros anos...
“E exércitos de reis, com seus vassalos,
“Como podia a terra sustentá-los?,
“Como podia a terra em si contê-los?
“Nem juntos, juntos, como os teus cabelos...
“Se os deuses destronei dos velhos povos
“(E só por dar lugar aos deuses novos)
“Com mais justa razão, justa e mais forte,
“Tereis, sem excepção, a mesma sorte!
“Que, mesmo assim, vê bem!, os homens são
“Feras cruéis, com uso da razão...
“Se o mundo é todo horror, pirataria,
“Sem mim, travão e algoz, que não seria?!...
“Embora me pagueis com ódio fundo,
“Um mal eu sou que dá remédio ao mundo.”
As órbitas do crânio em mim cravadas,
De novo ri, mais forte, às gargalhadas.
E, súbito, acordei, horrorizado...
– Que pena a Morte não me ter levado!
In “Cruz” – 1961
Gentil de Valadares
1916 – 2006
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