Quarta-feira, 13 de Setembro de 2023

Recordando... Nuno Júdice

CHUVA

 

Chove como sempre. E,

sempre que chove,

as pessoas abrigam-se

(as que não estavam à

espera que chovesse);

ou abrem, simplesmente,

o chapéu-de-chuva - de

preferência com fecho

automático. Porque, quando

chove, todos temos de

fazer alguma coisa: até

nós, que estamos dentro

de casa. Vão, uns, até

à janela, comentando:

“Que Inverno!”; sentam-se,

outros, com um papel

à frente: e escrevem

um poema, como este.

 

In “Um Canto na Espessura do Tempo” 1992

Quetzal Editores

 

Nuno Júdice

(N.1949)

publicado por cateespero às 00:00
link do post | Deixe seu comentário | favorito
Sábado, 19 de Novembro de 2022

Recordando... Nuno Júdice

A VIDA

 

A vida, as suas perdas e os seus ganhos, a sua

mais que perfeita imprecisão, os dias que contam

quando não se espera, o atraso na preocupação

dos teus olhos, e as nuvens que caíram

mais depressa, nessa tarde, o círculo das relações

a abrir-se para dentro e para fora

dos sentidos que nada têm a ver com círculos,

quadrados, rectângulos, nas linhas

rectas e paralelas que se cruzam com as

linhas da mão;

 

a vida que traz consigo as emoções e os acasos,

a luz inexorável das profecias que nunca se realizaram

e dos encontros que sempre se soube que

se iriam dar, mesmo que nunca se soubesse com

quem e onde, nem quando; essa vida que leva consigo

o rosto sonhado numa hesitação de madrugada,

sob a luz indecisa que apenas mostra

as paredes nuas, de manchas húmidas

no gesso da memória;

 

a vida feita dos seus

corpos obscuros e das suas palavras

próximas.

 

In "Teoria Geral do Sentimento"

Quetzal Editores

 

Nuno Júdice

(N.1949)

publicado por cateespero às 00:00
link do post | Deixe seu comentário | favorito
Quarta-feira, 7 de Outubro de 2020

Recordando... Nuno Júdice

VOLTA ATÉ MIM NO SILÊNCIO DA NOITE

 

Volta até mim no silêncio da noite

a tua voz que eu amo, e as tuas palavras

que eu não esqueço. Volta até mim

para que a tua ausência não embacie

o vidro da memória, nem o transforme

no espelho baço dos meus olhos. Volta

com os teus lábios cujo beijo sonhei num estuário

vestido com a mortalha da névoa; e traz

contigo a maré cheia da manhã com que

todos os náufragos sonharam.

 

In “O Movimento do Mundo”

Quetzal Editores

 

Nuno Júdice

(N.1949)

publicado por cateespero às 00:00
link do post | Deixe seu comentário | favorito
Sexta-feira, 31 de Maio de 2019

Recordando... Nuno Júdice

DEFINIÇÃO

 

Quem esquece o amor, e o dissipa, saberá

que sentimento corrompe, ou apenas se o coração

se encontra no vazio da memória? O vento

não percorre a tarde com o seu canto alucinado,

que só os loucos pressentem, para que tu

o ignores; nem a sabedoria melancólica das árvores

te oferece uma sombra para que lhe

fujas com um riso ágil de quem crê

na superfície da vida. Esses são alguns limites

que a natureza põe a quem resiste à convicção

da noite. O caminho está aberto, porém,

para quem se decida a reconhecê-los; e os própnos

passos encontram a direcção fácil nos sulcos

que o poema abriu na erva gasta da linguagem. Então,

entra nesse campo; não receies o horizonte

que a tempestade habita, à tarde, nem o vulto inquieto

cujos braços te chamam. Apropria-te do calor

seco dos vestíbulos. Bebe o licor

das conchas residuais do sexo. Assim, os teus lábios

imprimem nos meus uma marca de sangue, manchando

o verso. Ambos cedemos à promiscuidade do poente,

ignorando as nuvens e os astros. O amor

é esse contacto sem espaço,

o quarto fechado das sensações,

a respiração que a terra ouve

pelos ouvidos da treva.

 

In "Um Canto na Espessura do Tempo"

Quetzal Editores

 

Nuno Júdice

(N.1949)

publicado por cateespero às 00:00
link do post | Deixe seu comentário | ler comentários (1) | favorito
Sexta-feira, 1 de Setembro de 2017

Recordando... Nuno Júdice

GÉNESIS

 

No princípio era o verbo, e eu traduzia-o

em palavras com um sentido fundo como o poço

de onde as mulheres puxavam os baldes de água,

à tarde, para refrescar o chão de agosto. Nas

cordas de roupa do quintal, eu estendia as palavras

para as secar: e via o sol atravessá-las até ao osso,

dissecando o seu corpo mais vago — as vogais fechadas

do fim, ou a enunciação de um infinito

Até ao limite do verbo.

 

No principio também eram as coisas: umas

sobre as outras, no alinhamento curvo do destino,

corno se não estivessem para cair nessa trepidação

de rimas que um fim de verso pode trazer. Então,

levantava-as do chão onde se tinham partido em pedaços,

as coisas brancas da lua e as coisas vermelhas do sol,

e colava-as na parede, vendo o muro subir

até ao tecto celeste..

 

E no fim, volta a ser o verbo. Arranha-me a língua

com as suas unhas de consoantes; e pego-lhe ao colo,

para que não fira os pés nas pedras do campo, ouvindo

a sua voz de carne e oo escrever-me, no fundo

da cabeça, e a toda a largura da alma, a frase

redonda do amor. Trabalho a sua sintaxe, até

descobrir as articulações do segredo; e abraço

o corpo que nasce na conjugação

das suas pálpebras, abertas até ao fundo

dos olhos, onde te vejo.

 

In “O Estado dos Campos”

Publicações Dom Quixote

 

Nuno Júdice

(N. 1949)

publicado por cateespero às 00:00
link do post | Deixe seu comentário | favorito
Domingo, 19 de Março de 2017

Recordando... Nuno Júdice

PARA ESCREVER O POEMA

 

O poeta quer escrever sobre um pássaro:

e o pássaro foge-lhe do verso.

O poeta quer escrever sobre a maçã:

e a maçã cai-lhe do ramo onde a pousou.

O poeta quer escrever sobre uma flor:

e a flor murcha no jarro da estrofe.

Então, o poeta faz uma gaiola de palavras

para o pássaro não fugir.

Então, o poeta chama pela serpente

para que ela convença Eva a morder a maçã.

Então, o poeta põe água na estrofe

para que a flor não murche.

Mas um pássaro não canta

quando o fecham na gaiola.

A serpente não sai da terra

porque Eva tem medo de serpentes.

E a água que devia manter viva a flor

escorre por entre os versos.

E quando o poeta pousou a caneta,

o pássaro começou a voar,

Eva correu por entre as macieiras

e todas as flores nasceram da terra.

O poeta voltou a pegar na caneta,

escreveu o que tinha visto,

e o poema ficou feito.

 

In “A Matéria do Poema”

Publicações D. Quixote

 

Nuno Júdice

(N. 1949)

publicado por cateespero às 00:00
link do post | Deixe seu comentário | favorito
Domingo, 13 de Fevereiro de 2011

Recordando... Nuno Júdice

SONHEI CONTIGO

 

Sonhei contigo embora nenhum sonho
possa ter habitantes tu, a quem chamo
amor, cada ano pudesse trazer
um pouco mais de convicção a
esta palavra. É verdade o sonho
poderá ter feito com que, nesta
rarefacção de ambos, a tua presença se
impusesse - como se cada gesto
do poema te restituísse um corpo
que sinto ao dizer o teu nome,
confundindo os teus
lábios com o rebordo desta chávena
de café já frio. Então, bebo-o
de um trago o mesmo se pode fazer
ao amor, quando entre mim e ti
se instalou todo este espaço -
terra, água, nuvens, rios e
o lago obscuro do tempo
que o inverno rouba à transparência
da fontes. É isto, porém, que
faz com que a solidão não seja mais
do que um lugar comum saber
que existes, aí, e estar contigo
mesmo que só o silêncio me
responda quando, uma vez mais
te chamo.

 

 

In “Poesia Reunida 1967-2000”

Publicações D. Quixote

 

Nuno Júdice

N. 1949

 

publicado por cateespero às 00:00
link do post | Deixe seu comentário | ler comentários (1) | favorito

.Eu

.pesquisar

 

.Março 2024

Dom
Seg
Ter
Qua
Qui
Sex
Sab
1
2
3
4
5
6
7
8
9
10
11
12
14
15
16
17
18
20
21
22
23
24
25
26
27
28
29
30
31

.Ano XVI

.posts recentes

. Recordando... Nuno Júdice

. Recordando... Nuno Júdice

. Recordando... Nuno Júdice

. Recordando... Nuno Júdice

. Recordando... Nuno Júdice

. Recordando... Nuno Júdice

. Recordando... Nuno Júdice

.arquivos

. Março 2024

. Fevereiro 2024

. Janeiro 2024

. Dezembro 2023

. Novembro 2023

. Outubro 2023

. Setembro 2023

. Agosto 2023

. Julho 2023

. Junho 2023

. Maio 2023

. Abril 2023

. Março 2023

. Fevereiro 2023

. Janeiro 2023

. Dezembro 2022

. Novembro 2022

. Outubro 2022

. Setembro 2022

. Agosto 2022

. Julho 2022

. Junho 2022

. Maio 2022

. Abril 2022

. Março 2022

. Fevereiro 2022

. Janeiro 2022

. Dezembro 2021

. Novembro 2021

. Outubro 2021

. Setembro 2021

. Agosto 2021

. Julho 2021

. Junho 2021

. Maio 2021

. Abril 2021

. Março 2021

. Fevereiro 2021

. Janeiro 2021

. Dezembro 2020

. Novembro 2020

. Outubro 2020

. Setembro 2020

. Agosto 2020

. Julho 2020

. Junho 2020

. Maio 2020

. Abril 2020

. Março 2020

. Fevereiro 2020

. Janeiro 2020

. Dezembro 2019

. Novembro 2019

. Outubro 2019

. Setembro 2019

. Agosto 2019

. Julho 2019

. Junho 2019

. Maio 2019

. Abril 2019

. Março 2019

. Fevereiro 2019

. Janeiro 2019

. Dezembro 2018

. Novembro 2018

. Outubro 2018

. Setembro 2018

. Agosto 2018

. Julho 2018

. Junho 2018

. Maio 2018

. Abril 2018

. Março 2018

. Fevereiro 2018

. Janeiro 2018

. Dezembro 2017

. Novembro 2017

. Outubro 2017

. Setembro 2017

. Agosto 2017

. Julho 2017

. Junho 2017

. Maio 2017

. Abril 2017

. Março 2017

. Fevereiro 2017

. Janeiro 2017

. Dezembro 2016

. Novembro 2016

. Outubro 2016

. Setembro 2016

. Agosto 2016

. Julho 2016

. Junho 2016

. Maio 2016

. Abril 2016

. Março 2016

. Fevereiro 2016

. Janeiro 2016

. Dezembro 2015

. Novembro 2015

. Outubro 2015

. Setembro 2015

. Agosto 2015

. Julho 2015

. Junho 2015

. Maio 2015

. Abril 2015

. Março 2015

. Fevereiro 2015

. Janeiro 2015

. Dezembro 2014

. Novembro 2014

. Outubro 2014

. Setembro 2014

. Agosto 2014

. Julho 2014

. Junho 2014

. Maio 2014

. Abril 2014

. Março 2014

. Fevereiro 2014

. Janeiro 2014

. Dezembro 2013

. Novembro 2013

. Outubro 2013

. Setembro 2013

. Agosto 2013

. Julho 2013

. Junho 2013

. Maio 2013

. Abril 2013

. Março 2013

. Fevereiro 2013

. Janeiro 2013

. Dezembro 2012

. Novembro 2012

. Outubro 2012

. Setembro 2012

. Agosto 2012

. Julho 2012

. Junho 2012

. Maio 2012

. Abril 2012

. Março 2012

. Fevereiro 2012

. Janeiro 2012

. Dezembro 2011

. Novembro 2011

. Outubro 2011

. Setembro 2011

. Agosto 2011

. Julho 2011

. Junho 2011

. Maio 2011

. Abril 2011

. Março 2011

. Fevereiro 2011

. Janeiro 2011

. Dezembro 2010

. Novembro 2010

. Outubro 2010

. Setembro 2010

. Agosto 2010

. Julho 2010

. Junho 2010

. Maio 2010

. Abril 2010

. Março 2010

. Fevereiro 2010

. Janeiro 2010

. Dezembro 2009

. Novembro 2009

. Outubro 2009

. Setembro 2009

. Agosto 2009

. Julho 2009

. Junho 2009

. Maio 2009

. Abril 2009

. Março 2009

. Fevereiro 2009

. Janeiro 2009

. Dezembro 2008

. Novembro 2008

. Outubro 2008

. Setembro 2008

. Agosto 2008

. Julho 2008

. Junho 2008

. Maio 2008

. Abril 2008

. Março 2008

. Fevereiro 2008

. Janeiro 2008

. Dezembro 2007

. Novembro 2007

. Outubro 2007

. Setembro 2007

. Agosto 2007

. Julho 2007

. Junho 2007

. Maio 2007

. Abril 2007

.tags

. todas as tags

blogs SAPO

.subscrever feeds