NATAL
Acontecia. No vento. Na chuva. Acontecia.
Era gente a correr pela música acima.
Uma onda uma festa. Palavras a saltar.
Eram carpas ou mãos. Um soluço uma rima.
Guitarras guitarras. Ou talvez mar.
E acontecia. No vento. Na chuva. Acontecia.
Na tua boca. No teu rosto. No teu corpo acontecia.
No teu ritmo nos teus ritos.
No teu sono nos teus gestos. (Liturgia liturgia).
Nos teus gritos. Nos teus olhos quase aflitos.
E nos silêncios infinitos. Na tua noite e no teu dia.
No teu sol acontecia.
Era um sopro. Era um salmo. (Nostalgia nostalgia).
Todo o tempo num só tempo: andamento
de poesia. Era um susto. Ou sobressalto. E acontecia.
Na cidade lavada pela chuva. Em cada curva
acontecia. E em cada acaso. Como um pouco de água turva
na cidade agitada pelo vento.
Natal Natal (diziam). E acontecia.
Como se fosse na palavra a rosa brava
acontecia. E era Dezembro que floria.
Era um vulcão. E no teu corpo a flor e a lava.
E era na lava a rosa e a palavra.
Todo o tempo num só tempo: nascimento de poesia.
In “Antologia Poética”
Manuel Alegre
(N.1936)
NATAL
Na quadra do Natal
Neste nosso Portugal
Em todo o mundo também
É só amor e carinho
Ajuda-se o pobrezinho
Não se esquece ninguém
Para familiares e amigos
Os novos e os antigos
Dão-se prendas e presentes
Mas esquece-se em seguida
Continua a ser esquecida
As pessoas doentes
É assim em toda a terra
Fazem-se tréguas na guerra
Que acabam no outro dia
Volta o ódio e a vingança
Acabou-se a esperança
Terminou a alegria
Ó quanta hipocrisia
E alguma cobardia
No pensamento humano
Carinho e amor no Natal
Mas depois continua o mal
O resto de todo o ano
Amar como Jesus amou
Sonhar como ele sonhou
Ajudar o nosso irmão
Diga-mos não à guerra
Para que tenhamos paz na terra
Sem sacrifício nem opressão
O Natal deveria ser
E ninguém se esquecer
Todos os dias do ano
Para sempre nos amar
Toda a gente se respeitar
Nisto não há engano
In “União dos Escritores e Artistas
Transmontanos e Altodurienses – UNEARTA”
Revista mensal - N.º 13 - Ano 2 - Janeiro 2003
Norberto Martins
(Poeta popular)
NATAL
Mais uma vez, cá vimos
Festejar o teu novo nascimento,
Nós, que, parece, nos desiludimos
Do teu advento!
Cada vez o teu Reino é menos deste mundo!
Mas vimos, com as mãos cheias dos nossos pomos,
Festejar-te, — do fundo
Da miséria que somos.
Os que à chegada
Te vimos esperar com palmas, frutos, hinos,
Somos — não uma vez, mas cada —
Teus assassinos.
À tua mesa nos sentamos:
Teu sangue e corpo é que nos mata a sede e a fome;
Mas por trinta moedas te entregamos;
E por temor, negamos o teu nome.
Sob escárnios e ultrajes,
Ao vulgo te exibimos, que te aclame;
Te rojamos nas lajes;
Te cravejamos numa cruz infane.
Depois, a mesma cruz, a erguemos,
Como um farol de salvação,
Sobre as cidades em que ferve extremos
A nossa corrupção.
Os que em leilão a arrematamos
Como sagrada peça única,
Somos os que jogamos,
Para comércio, a tua túnica.
Tais somos, os que, por costume,
Vimos, mais uma vez,
Aquecer-nos ao lume
Que do teu frio e solidão nos dês.
Como é que ainda tens a infinita paciência
De voltar, — e te esqueces
De que a nossa indigência
Recusa Tudo que lhe ofereces?
Mas, se um ano tu deixas de nascer,
Se de vez se nos cala a tua voz,
Se enfim por nós desistes de morrer,
Jesus recém-nascido!, o que será de nós?!
In “Obra Completa Poesia”
INCM - Imprensa Nacional Casa da Moeda
José Régio **
(1901-1969)
** Pseudónimo de José Maria dos Reis Pereira
NATAL
Menino Jesus feliz
Que não cresceste
Nestes oitenta anos!
Que não tiveste
Os desenganos
Que eu tive
De ser homem,
E continuas criança
Nos meus versos
De saudade
Do presépio
Em que também nasci,
E onde me vejo sempre igual a ti.”
In “Diário XV”
Coimbra Editora
Miguel Torga **
(1907-1995)
** Pseudónimo de Adolfo Correia da Rocha
NATAL
Ninguém o viu nascer.
Mas todos acreditam
Que nasceu.
É um menino e é Deus.
Na Páscoa vai morrer, já homem,
Porque entretanto cresceu
E recebeu
A missão singular
De carregar a cruz da nossa redenção.
Agora, nos cueiros da imaginação,
Sorri apenas
A quem vem,
Enquanto a Mãe,
Também
Imaginada,
Com ele ao colo,
Se enternece
E enternece
Os corações,
Cúmplice do milagre, que acontece
Todos os anos e em todas as nações.
In “Diários - Volumes XIII a XVI”
Publicações Dom Quixote
Miguel Torga **
(1907-1995)
** Pseudónimo de Adolfo Correia da Rocha
NATAL
Nasce um deus. Outros morrem. A Verdade
Nem veiu nem se foi: o Erro mudou.
Temos agora uma outra Eternidade,
E era sempre melhor o que passou.
Cega, a Sciencia a inutil gleba lavra.
Louca, a Fé vive o sonho do seu culto.
Um novo deus é só uma palavra.
Não procures nem creias: tudo é oculto.
In “Contemporanea”
Director – José Pacheco
Redactor Principal – Oliveira Mouta
Editor – Agostinho Fernandes
Ano I – Volume II – Nº.6 Ano 1922
Pág. 88
Fernando Pessoa
1888 – 1935
Mantém a grafia original
NATAL, E NÃO DEZEMBRO
Entremos, apressados, friorentos,
Numa gruta, no bojo de um navio,
Num presépio, num prédio, num presídio,
No prédio que amanhã for demolido...
Entremos, inseguros, mas entremos.
Entremos, e depressa, em qualquer sítio,
Porque esta noite chama-se Dezembro,
Porque sofremos, porque temos frio.
Entremos, dois a dois: somos duzentos,
Duzentos mil, doze milhões de nada.
Procuremos o rastro de uma casa,
A cave, a gruta, o sulco de uma nave...
Entremos, despojados, mas entremos.
De mãos dadas talvez o fogo nasça,
Talvez seja Natal e não Dezembro,
Talvez universal a consoada.
In “Cancioneiro do Natal”
(Prémio Nacional de Poesia – 1971)
Edições Rolim – 1986
David Mourão-Ferreira
1927 – 1996
NATAL URGENTE
São tantos os Natais que tenho escrito,
Mensagem de Natal p'ra toda a gente!
Que não posso conter este meu grito
De escrever mais este Natal Urgente!...
Sinto estalar-me o peito de amargura,
De tanta imagem triste de Natal!
Domina a violência e a loucura
Neste mundo terrível e brutal!...
Não há paz, só há guerra, fome e dor,
E os homens não se entendem afinal!
Campeia a morte, o medo e o terror,
Num cortejo de sangue crucial!...
O mundo não entende, por maldade,
Que o Natal é – Amor, Fraternidade,
Sempre e em todo o tempo, por igual!...
Que este Natal desperte bem profundo,
E deixem de existir por todo o mundo,
- Assassinos da Paz e do Natal!
Natal de 1992
In “Etéreas Sinfonias de Natal”
Edição do Autor
Castro Reis
1918 – 2007
NATAL
Outro natal,
Outra comprida noite
De consoada
Fria,
Vazia,
Bonita só de ser imaginada.
Que fique dela, ao menos,
Mais um poema breve
Recitado
Pela neve
A cair, ao de leve,
No telhado.
In “Antologia Poética”
Miguel Torga
1907 – 1995
NATAL
Neste caminho cortado
Entre pureza e pecado
Que chamo vida,
Nesta vertigem de altura
Que me absorve e depura
De tanta queda caída,
É que Tu nasces ainda
Como nasceste
Do ventre da Tua mãe.
Bendita a Tua candura.
Bendita a minha também.
Mas se me perco e Te perco,
Quando me afogo no esterco
Do meu destino cumprido,
À hora em que Te rejeito
E sangra e dói no Teu peito
A chaga de eu ter esquecido,
É que Tu jazes por mim
Como jazeste
No colo da Tua mãe.
Bendita a Tua amargura
Bendita a minha também.
In "Livro III" – Poemas de Natal e da Paixão de Cristo
Reinaldo Ferreira
1922 – 1959
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