Domingo, 1 de Outubro de 2023

Recordando... Natália Correia

PROJECTO DE BODAS

 

Hoje apetece que uma rosa seja

O coração exterior do dia;

E a tua adolescência de cereja

No meu bico de Isolda Cotovia.

 

Hoje apetece a intuição dum cais

Para a lucidez de não chegar a tempo

E ficarmos violetas nupciais

Com a lua a celebrar o casamento.

 

Apetece uma casa cor-de-rosa

Com um galo vermelho no telhado

E os degraus duma seda vagarosa

Que nunca chegue à varanda do noivado.

 

Hoje apetece que o cigarro saiba

A ter fumado uma cidade toda.

Ser o anel onde o teu dedo caiba

E faltarmos os dois à nossa boda.

 

Hoje apetece um interior de esponja

E como estátua a que moldar o vento.

Deitar as sortes e, se sair monja,

Navegar ao acaso o meu convento.

 

Hoje apetece o mundo pelo modo

Como vai despenhar-se um trapezista.

Abrir mais uma flor no nosso lodo:

Pedir-lhe um salto e retirar-lhe a pista.

 

Hoje apetece que a cor dum automóvel

Seja o Egipto de novo em movimento;

E que no espaço duma gota imóvel

Caiba a possível capital do vento.

 

Hoje apetece ter nascido loiro

Como apetece ter havido Atenas;

E tu nas curvas rápidas de um toiro.

E eu quase intangível como as renas.

 

Hoje apetece que venhas no jornal

Como um anúncio. Sem fotografia.

E inventar-te uma lenda de cristal

Para reflectir a minha biografia.

 

In “Antologia Poética”

Publicações Dom Quixote

 

Natália Correia

(1923-1993)

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Domingo, 13 de Março de 2022

Recordando... Natália Correia

COMO DIZER O SILÊNCIO?

 

Se em folhagem de poema

me catais anacolutos

é vossa a fraude. A gema

não desce a sons prostitutos.

 

O saltério, diletante,

fere a Musa com um jasmim?

Só daí para diante

da busca estará o fim.

 

Aberta a porta selada,

sou pensada já não penso.

Se a Musa fica calada

como dizer o silêncio?

 

Atirar pérola a porco?

Não me queimo na parábola.

Em mãos que brincam com o fogo

é que eu não ponho a espada.

 

Dos confins, o peristilo

calo com pontas de fogo,

e desse casto sigilo

versos são só desafogo.

 

E também para que me lembrem

deixo-os no mercado negro,

que neles glórias se vendem

e eu não sou só desapego.

 

Raiz de Deus entre os dentes,

aí, pára a transmissão.

Ultrassons dessas nascentes

só aves entenderão.

 

In “O Dilúvio e a Pomba”

Edições Dom Quixote - 1979

 

Natália Correia

(1923-1993)

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Sábado, 1 de Fevereiro de 2020

Recordando... Natália Correia

A RAPARIGA DO SWEATER VERMELHO

 

Para os que gostam de fruta tu tens o sabor almiscarado.

Entre os balubas serias uma fêmea baluba cor de cera.

No Egipto era uma flor de lótus o teu penteado

para os insectos serás outra variedade de pêra.

 

Na cama dos solitários andrenídeos

és um corpo apetecido pelas abelhas

e se em teus dedos nascer a flor dos suicídios

és um pecado venial de unhas vermelhas,

 

venial volumosa e branca muito odorífera

dando claridade à sombra dos quartos de aluguer.

Para os assassinos serás uma arma mortífera

para os pederastas a raiva de não serem mulher.

 

Para os anjos és talvez a alternativa

de em ti encarnar a graça que eles têm no ar.

É de ti mesma que estás arborizada e viva

ou serás como as rosas apenas para ver e cheirar?

 

In "O vinho e a lira"

Edições Afrodite

 

Natália Correia

(1923-1993)

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Segunda-feira, 31 de Dezembro de 2018

Recordando... Natália Correia

DE AMOR NADA MAIS RESTA QUE UM OUTUBRO

 

De amor nada mais resta que um Outubro

e quanto mais amada mais desisto:

quanto mais tu me despes mais me cubro

e quanto mais me escondo mais me avisto.

 

E sei que mais te enleio e te deslumbro

porque se mais me ofusco mais existo.

Por dentro me ilumino, sol oculto,

por fora te ajoelho, corpo místico.

 

Não me acordes. Estou morta na quermesse

dos teus beijos. Etérea, a minha espécie

nem teus zelos amantes a demovem.

 

Mas quanto mais em nuvem me desfaço

mais de terra e de fogo é o abraço

com que na carne queres reter-me jovem.

 

In “Poesia Completa”

Publicações Dom Quixote

 

Natália Correia

(1923-1993)

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Sábado, 31 de Dezembro de 2016

Recordando... Natália Correia

ODE À PAZ

 

Pela verdade, pelo riso, pela luz, pela beleza,

Pelas aves que voam no olhar de uma criança,

Pela limpeza do vento, pelos actos de pureza,

Pela alegria, pelo vinho, pela música, pela dança,

Pela branda melodia do rumor dos regatos,

 

Pelo fulgor do estio, pelo azul do claro dia,

Pelas flores que esmaltam os campos, pelo sossego dos pastos,

Pela exactidão das rosas, pela Sabedoria,

Pelas pérolas que gotejam dos olhos dos amantes,

Pelos prodígios que são verdadeiros nos sonhos,

Pelo amor, pela liberdade, pelas coisas radiantes,

Pelos aromas maduros de suaves outonos,

Pela futura manhã dos grandes transparentes,

Pelas entranhas maternas e fecundas da terra,

Pelas lágrimas das mães a quem nuvens sangrentas

Arrebatam os filhos para a torpeza da guerra,

Eu te conjuro ó paz, eu te invoco ó benigna,

Ó Santa, ó talismã contra a indústria feroz.

Com tuas mãos que abatem as bandeiras da ira,

Com o teu esconjuro da bomba e do algoz,

Abre as portas da História, deixa passar a Vida!

 

[Inéditos - (1985/1990)]

 

In “O Sol nas Noites e o Luar nos Dias”

Poesia Completa

Publicações Dom Quixote

 

Natália Correia

(1923-1993)

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Quarta-feira, 13 de Abril de 2016

Recordando... Natália Correia

A ALMA

 

Votada ao fogo obediente ao perigo

Feroz do amor ser muito e o tempo pouco,

Chegas ébrio de sonho, ó estranho amigo

E eu não sei se por mim és anjo ou louco.

 

Num beijo infindo queres morrer comigo.

Nesse extremo és sagrado e eu não te toco.

Esquivo-me: o teu sonho mais instigo.

Fujo-te: a tua chama mais provoco.

 

A incêndio do teu sangue me condenas

E com ciumentas ervas te envenenas

Dizendo às nuvens que só tu me viste.

 

Bebendo o vinho de amantes mortos queres

Que eu seja a mais prateada das mulheres.

E de ser tão amada eu fico triste.

 

In “Sonetos Românticos”

Editora "O Jornal” 1990

 

Natália Correia

(1923-1993)

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Quarta-feira, 13 de Maio de 2015

Recordando... Natália Correia

O ESPÍRITO

 

Nada a fazer amor, eu sou do bando

Impermanente das aves friorentas;

E nos galhos dos anos desbotando

Já as folhas me ofuscam macilentas;

 

E vou com as andorinhas. Até quando?

A vida breve não perguntes: cruentas

Rugas me humilham. Não mais em estilo brando

Ave estroina serei em mãos sedentas.

 

Pensa-me eterna que o eterno gera

Quem na amada o conjura. Além, mais alto,

Em ileso beiral, aí espera:

 

Andorinha indemne ao sobressalto

Do tempo, núncia de perene primavera.

Confia. Eu sou romântica. Não falto.

 

In “Sonetos Românticos”

Edições O Jornal – 1990

 

Natália Correia

(1923 – 1993)

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Segunda-feira, 19 de Janeiro de 2015

Recordando... Natália Correia

MÃOS FERIDAS NA PORTA DUM SILÊNCIO

 

Vida que às costas me levas

porque não dás um corpo às tuas trevas?

 

Porque não dás um som àquela voz

que quer rasgar o teu silêncio em nós?

 

Porque não dás à pálpebra que pede

aquele olhar que em ti se perde?

 

Porque não dás vestidos à nudez

que só tu vês?

 

In "Poesia Completa"

Publicações Dom Quixote

 

Natália Correia

1923 – 1993

 

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Sexta-feira, 13 de Janeiro de 2012

Recordando... Natália Correia

SETE LUAS

 

Há noites que são feitas dos meus braços
e um silêncio comum às violetas
e há sete luas que são sete traços
de sete noites que nunca foram feitas

Há noites que levamos à cintura
como um cinto de grandes borboletas.
E um risco a sangue na nossa carne escura
duma espada à bainha de um cometa.

Há noites que nos deixam para trás
enrolados no nosso desencanto
e cisnes brancos que só são iguais
à mais longínqua onda de seu canto.

Há noites que nos levam para onde
o fantasma de nós fica mais perto:
e é sempre a nossa voz que nos responde
e só o nosso nome estava certo.

 

 

Dimensão Encontrada – 1957  

Edição da Autora

 

Natália Correia

1923 – 1993

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Sexta-feira, 21 de Maio de 2010

Recordando... Natália Correia... Poetisa do Séc. XX

QUEIXA DAS ALMAS JOVENS CENSURADAS

 

Dão-nos um lírio e um canivete
E uma alma para ir à escola
E um letreiro que promete
Raízes, hastes e corola.

 

Dão-nos um mapa imaginário
Que tem a forma duma cidade
Mais um relógio e um calendário
Onde não vem a nossa idade.

 

Dão-nos a honra de manequim
Para dar corda à nossa ausência.
Dão-nos o prémio de ser assim
Sem pecado e sem inocência.

 

Dão-nos um barco e um chapéu
Para tirarmos o retrato.
Dão-nos bilhetes para o céu
Levado à cena num teatro.

 

Penteiam-nos os crânios ermos
Com as cabeleiras dos avós
Para jamais nos parecermos
Connosco quando estamos sós.

 

Dão-nos um bolo que é a história
Da nossa história sem enredo
E não nos soa na memória
Outra palavra para o medo.

 

Temos fantasmas tão educados
Que adormecemos no seu ombro
Sonos vazios, despovoados
De personagens do assombro.

 

Dão-nos a capa do evangelho
E um pacote de tabaco.
Dão-nos um pente e um espelho
Para pentearmos um macaco.

 

Dão-nos um cravo preso à cabeça
E uma cabeça presa à cintura
Para que o corpo não pareça
A forma da alma que o procura.

 

Dão-nos um esquife feito de ferro
Com embutidos de diamante
Para organizar já o enterro
Do nosso corpo mais adiante.

 

Dão-nos um nome e um jornal,
Um avião e um violino.
Mas não nos dão o animal
Que espeta os cornos no destino.

 

Dão-nos marujos de papelão
Com carimbo no passaporte.
Por isso a nossa dimensão
Não é a vida. Nem é a morte.

 

 

In “Poesia Completa”

Publicações Dom Quixote

 

Natália Correia
1923 – 1993

 

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