A CASA DO POETA
Pelo meu acto de inventar amigos
como quem lá de cima vê Lisboa
a acusar-se numa fotografia
tirada de um avião e lhe perdoa
minha propriedade vertical
levanto como quem na hora extrema
se salva a tempo como quem ao inimigo
oferece a face esquerda do poema.
Ó pedreiros do meu amor de sempre
fazendo a minha casa com a alegria
de quem se escolhe a morrer pelos outros
deita uma lágrima e merece o dia!
Casa que não se esconde atrás das portas
endereço de guerra redimida
roupa de amor a pingar sobre quem passa
renda que pago em sofrimento à vida
minha casa ingénua de armistício
assinado entre mim e os descrentes
casa de versos que escrevo na brancura
da cal que empalidece pelos ausentes.
No acalento da sala que é de estar
entre algodões porque é sala de ser
esperamos que o elefante solitário
da tarde se afaste para morrer
e a noite com alcoólicos gorjeios
de pássaros de gim dentro dos copos
mata a sede de sermos um infinito
animal em lacerados corpos.
Plural solidão de casa muita
espaçoso afago casa substância
de amigos que encontramos no futuro
dançando o que nos resta de crianças.
In "Poesia Completa"
Publicações Dom Quixote, 1999
Pág. 319
Natália Correia
(1923-1993)
PROJECTO DE BODAS
Hoje apetece que uma rosa seja
O coração exterior do dia;
E a tua adolescência de cereja
No meu bico de Isolda Cotovia.
Hoje apetece a intuição dum cais
Para a lucidez de não chegar a tempo
E ficarmos violetas nupciais
Com a lua a celebrar o casamento.
Apetece uma casa cor-de-rosa
Com um galo vermelho no telhado
E os degraus duma seda vagarosa
Que nunca chegue à varanda do noivado.
Hoje apetece que o cigarro saiba
A ter fumado uma cidade toda.
Ser o anel onde o teu dedo caiba
E faltarmos os dois à nossa boda.
Hoje apetece um interior de esponja
E como estátua a que moldar o vento.
Deitar as sortes e, se sair monja,
Navegar ao acaso o meu convento.
Hoje apetece o mundo pelo modo
Como vai despenhar-se um trapezista.
Abrir mais uma flor no nosso lodo:
Pedir-lhe um salto e retirar-lhe a pista.
Hoje apetece que a cor dum automóvel
Seja o Egipto de novo em movimento;
E que no espaço duma gota imóvel
Caiba a possível capital do vento.
Hoje apetece ter nascido loiro
Como apetece ter havido Atenas;
E tu nas curvas rápidas de um toiro.
E eu quase intangível como as renas.
Hoje apetece que venhas no jornal
Como um anúncio. Sem fotografia.
E inventar-te uma lenda de cristal
Para reflectir a minha biografia.
In “Antologia Poética”
Publicações Dom Quixote
Natália Correia
(1923-1993)
COMO DIZER O SILÊNCIO?
Se em folhagem de poema
me catais anacolutos
é vossa a fraude. A gema
não desce a sons prostitutos.
O saltério, diletante,
fere a Musa com um jasmim?
Só daí para diante
da busca estará o fim.
Aberta a porta selada,
sou pensada já não penso.
Se a Musa fica calada
como dizer o silêncio?
Atirar pérola a porco?
Não me queimo na parábola.
Em mãos que brincam com o fogo
é que eu não ponho a espada.
Dos confins, o peristilo
calo com pontas de fogo,
e desse casto sigilo
versos são só desafogo.
E também para que me lembrem
deixo-os no mercado negro,
que neles glórias se vendem
e eu não sou só desapego.
Raiz de Deus entre os dentes,
aí, pára a transmissão.
Ultrassons dessas nascentes
só aves entenderão.
In “O Dilúvio e a Pomba”
Edições Dom Quixote - 1979
Natália Correia
(1923-1993)
A RAPARIGA DO SWEATER VERMELHO
Para os que gostam de fruta tu tens o sabor almiscarado.
Entre os balubas serias uma fêmea baluba cor de cera.
No Egipto era uma flor de lótus o teu penteado
para os insectos serás outra variedade de pêra.
Na cama dos solitários andrenídeos
és um corpo apetecido pelas abelhas
e se em teus dedos nascer a flor dos suicídios
és um pecado venial de unhas vermelhas,
venial volumosa e branca muito odorífera
dando claridade à sombra dos quartos de aluguer.
Para os assassinos serás uma arma mortífera
para os pederastas a raiva de não serem mulher.
Para os anjos és talvez a alternativa
de em ti encarnar a graça que eles têm no ar.
É de ti mesma que estás arborizada e viva
ou serás como as rosas apenas para ver e cheirar?
In "O vinho e a lira"
Edições Afrodite
Natália Correia
(1923-1993)
DE AMOR NADA MAIS RESTA QUE UM OUTUBRO
De amor nada mais resta que um Outubro
e quanto mais amada mais desisto:
quanto mais tu me despes mais me cubro
e quanto mais me escondo mais me avisto.
E sei que mais te enleio e te deslumbro
porque se mais me ofusco mais existo.
Por dentro me ilumino, sol oculto,
por fora te ajoelho, corpo místico.
Não me acordes. Estou morta na quermesse
dos teus beijos. Etérea, a minha espécie
nem teus zelos amantes a demovem.
Mas quanto mais em nuvem me desfaço
mais de terra e de fogo é o abraço
com que na carne queres reter-me jovem.
In “Poesia Completa”
Publicações Dom Quixote
Natália Correia
(1923-1993)
ODE À PAZ
Pela verdade, pelo riso, pela luz, pela beleza,
Pelas aves que voam no olhar de uma criança,
Pela limpeza do vento, pelos actos de pureza,
Pela alegria, pelo vinho, pela música, pela dança,
Pela branda melodia do rumor dos regatos,
Pelo fulgor do estio, pelo azul do claro dia,
Pelas flores que esmaltam os campos, pelo sossego dos pastos,
Pela exactidão das rosas, pela Sabedoria,
Pelas pérolas que gotejam dos olhos dos amantes,
Pelos prodígios que são verdadeiros nos sonhos,
Pelo amor, pela liberdade, pelas coisas radiantes,
Pelos aromas maduros de suaves outonos,
Pela futura manhã dos grandes transparentes,
Pelas entranhas maternas e fecundas da terra,
Pelas lágrimas das mães a quem nuvens sangrentas
Arrebatam os filhos para a torpeza da guerra,
Eu te conjuro ó paz, eu te invoco ó benigna,
Ó Santa, ó talismã contra a indústria feroz.
Com tuas mãos que abatem as bandeiras da ira,
Com o teu esconjuro da bomba e do algoz,
Abre as portas da História, deixa passar a Vida!
[Inéditos - (1985/1990)]
In “O Sol nas Noites e o Luar nos Dias”
Poesia Completa
Publicações Dom Quixote
Natália Correia
(1923-1993)
A ALMA
Votada ao fogo obediente ao perigo
Feroz do amor ser muito e o tempo pouco,
Chegas ébrio de sonho, ó estranho amigo
E eu não sei se por mim és anjo ou louco.
Num beijo infindo queres morrer comigo.
Nesse extremo és sagrado e eu não te toco.
Esquivo-me: o teu sonho mais instigo.
Fujo-te: a tua chama mais provoco.
A incêndio do teu sangue me condenas
E com ciumentas ervas te envenenas
Dizendo às nuvens que só tu me viste.
Bebendo o vinho de amantes mortos queres
Que eu seja a mais prateada das mulheres.
E de ser tão amada eu fico triste.
In “Sonetos Românticos”
Editora "O Jornal” 1990
Natália Correia
(1923-1993)
O ESPÍRITO
Nada a fazer amor, eu sou do bando
Impermanente das aves friorentas;
E nos galhos dos anos desbotando
Já as folhas me ofuscam macilentas;
E vou com as andorinhas. Até quando?
A vida breve não perguntes: cruentas
Rugas me humilham. Não mais em estilo brando
Ave estroina serei em mãos sedentas.
Pensa-me eterna que o eterno gera
Quem na amada o conjura. Além, mais alto,
Em ileso beiral, aí espera:
Andorinha indemne ao sobressalto
Do tempo, núncia de perene primavera.
Confia. Eu sou romântica. Não falto.
In “Sonetos Românticos”
Edições O Jornal – 1990
Natália Correia
(1923 – 1993)
MÃOS FERIDAS NA PORTA DUM SILÊNCIO
Vida que às costas me levas
porque não dás um corpo às tuas trevas?
Porque não dás um som àquela voz
que quer rasgar o teu silêncio em nós?
Porque não dás à pálpebra que pede
aquele olhar que em ti se perde?
Porque não dás vestidos à nudez
que só tu vês?
In "Poesia Completa"
Publicações Dom Quixote
Natália Correia
1923 – 1993
SETE LUAS
Há noites que são feitas dos meus braços
e um silêncio comum às violetas
e há sete luas que são sete traços
de sete noites que nunca foram feitas
Há noites que levamos à cintura
como um cinto de grandes borboletas.
E um risco a sangue na nossa carne escura
duma espada à bainha de um cometa.
Há noites que nos deixam para trás
enrolados no nosso desencanto
e cisnes brancos que só são iguais
à mais longínqua onda de seu canto.
Há noites que nos levam para onde
o fantasma de nós fica mais perto:
e é sempre a nossa voz que nos responde
e só o nosso nome estava certo.
Dimensão Encontrada – 1957
Edição da Autora
Natália Correia
1923 – 1993
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