RESSABIADAS
Talvez lá no fundo acredite
que os seres humanos são todos sensivelmente
os mesmos em toda a parte, mas então
necessariamente as mulheres são mais.
Costumes que frequentamos:
o arame da loiça, os panos dos pratos, os ganchos e as linhas
do estendal, a vinha-de-alhos, o fogão,
o alguidar, guardamos os restos, torcemos
os trapos, os nossos recados, os nossos sacos,
os nossos ovos.
Certamente que eles, em grande maioria,
escanhoam os queixos e gostam
de arejar, mas não médicos, polícias,
engraxadores, economistas
e os vários naipes da banda filarmónica
nós somos todas domésticas, mesmo
assim não nos entendemos, e
nem serve escrever isto
que o maniqueísmo em traços largos
resvala na aldrabice, e a poesia
vem dos anjos já se sabe
carecidos de sexo.
E aliás que me rala a mim,
levo a minha vida e tenho o amor
de que não desconfio
e se consolo o cio e a fome
decerto falo de cor,
nem é por isso que me doem os calos
mas por causa dos bicos
dos vossos saltos
no desnível dos soalhos, refinadas
galdérias que se tomam a sério,
pestanas certeiras e beiços
que brilham, línguas que estalam
e mamas que chispam
corada invoco a imagem mal tirada
da fêmea recortada ao macho que a conforma;
sei que desminto qualquer laço comunal
e seja como for ninguém pediu
o meu palpite, pelo que não me habilito
e me desquito, acinte,
mudo, era eu
quem estava mal.
In “Mulher ao Mar”
Editora Mariposa Azual
Margarida Vale de Gato
(N.1973)
A IMAGEM ROMÂNTICA
Há outras coisas, Horácio,
e a tua filosofia é barata,
na verdade não custa fixar
as coisas ideais à distância:
terás vista panorâmica
mas sempre a visão é polémica.
Gostava que alguém me mostrasse,
mas não terei nunca garantia
de que envelhecer faça sentido.
As pessoas prostram-se, queremos que nos digam
porquê não haver luz nos seus rostos. Crestam
os cravos, antes rubros. Não há modo
de saber se as monarcas
têm memórias arenosas de lagarta.
Tudo sucede dentro de estanques
casulos, a seda é densa,
não se faz ideia
se isto acaba. Estrelas foscas
correm, pessoas morrem, a vida
é breve, impávido o
real se esquiva a designar.
Comparar é colidir: o verbo
talvez nos leve
a mais nenhum sinal.
In “Mulher ao Mar”
Mariposa Azual -2010
Margarida Vale de Gato
N. 1973
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