NÃO SEI DE AMOR SENÃO
Não sei de amor senão o amor perdido
o amor que só se tem de nunca o ter
procuro em cada corpo o nunca tido
e é esse que não pára de doer.
Não sei de amor senão o amor ferido
de tanto te encontrar e te perder.
Não sei de amor senão o não ter tido
teu corpo que não cesso de perder
nem de outro modo sei se tem sentido
este amor que só vive de não ter
o teu corpo que é meu porque perdido
não sei de amor senão esse doer.
Não sei de amor senão esse perder
teu corpo tão sem ti e nunca tido
para sempre só meu de nunca o ter
teu corpo que me dói no corpo ferido
onde nunca deixou nunca de doer
não sei de amor senão o amor perdido.
Não sei de amor senão o sem sentido
deste amor que não morre por morrer
o teu corpo tão nu nunca despido
o teu corpo tão vivo de o perder
neste amor que só é de não ter sido
não sei de amor senão esse não ter.
Não sei de amor senão o não haver
amor que dure mais do que o nunca tido.
Há um corpo que não para de doer
só esse é que não morre de tão perdido
só esse é sempre meu de nunca o ser
não sei de amor senão o amor ferido.
Não sei de amor senão o tempo ido
em que amor era amor de puro arder
tudo passa mas não o não ter tido
o teu corpo de ser e de não ser
só esse meu por nunca ter ardido
não sei de amor senão esse perder.
Cintilante na noite um corpo ferido
só nele de o não ter tido eu hei-de arder
não sei de amor senão amor perdido.
In “Livro Do Português Errante”
Publicações Dom Quixote
Manuel Alegre
(N.1936)
NÃO NECESSARIAMENTE UMA PALAVRA
Há versos silenciosos ocultos submersos
no sangue no recato no pudor
há versos que quem os sente fica sem saber
se está doente ou tonto e se o melhor
não será disfarçar para que ninguém
repare na mudança
da fala do andar do gesto
ou até do silêncio.
Um poema infiltra-se. Salta por dentro
rompe todos os diques da convenção
ninguém pode conter um poema
mesmo que seja apenas
uma vogal que de repente fica azul
ou uma consoante que desata a rabiar
ninguém pode conter essa toada
esse tremor de terra que sem que se dê por isso
altera subitamente a vida
e acende nas artérias mais obscuras
não necessariamente uma palavra
mas um fogo submerso
uma espécie de pedra cintilante
um fluxo de lava.
Ainda que se não saiba é já um verso
algo que bate fundo
como a sílaba cantante
do poema do mundo...
In "Doze Naus"
Publicações Dom Quixote
Manuel Alegre
(N.1936)
AS FACAS
Quatro letras nos matam quatro facas
que no corpo me gravam o teu nome.
Quatro facas amor com que me matas
sem que eu mate esta sede e esta fome.
Este amor é de guerra. (De arma branca).
Amando ataco amando contra-atacas
este amor é de sangue que não estanca.
Quatro letras nos matam quatro facas.
Armado estou de amor. E desarmado.
Morro assaltando morro se me assaltas.
E em cada assalto sou assassinado.
Quatro letras amor com que me matas.
E as facas ferem mais quando me faltas.
Quatro letras nos matam quatro facas.
In “Obra Poética”
Publicações Dom Quixote
Manuel Alegre
(N.1936)
O CANTO E AS ARMAS
Canto as armas e os homens
as pedras os metais
e as mãos que transformando
se transformam. Eu canto
o remo e a foice. Os símbolos.
Meu sangue é uma guitarra
tangida pelo Tempo.
Canto as armas e as mãos.
E as palavras que foram
areias tempestades
minutos. E o amor.
E também a memória
do cravo e da canela.
E também a quentura
de outras mãos: terra e astros.
E também a tristeza
e a festa. O sangue e as lágrimas.
O vinho: puro arder.
E também a viagem:
navegação lavoura
indústria – esse combate.
Procurai-me nas armas
no sílex no barro.
Pedra: meu nome é esse.
E escreve-se no vento.
Canto o carvão e as cinzas
as gazelas e os peixes
na fogueira contínua
das cavernas. E a pele
do tigre sobre a pele
do homem. Eis meu rosto:
está gravado na rocha.
Procurai-me no fóssil
e no carvão. Meu rosto
é cinza e Primavera.
Canto as armas e os homens.
Porque a Tribo me disse:
tu guardarás o fogo.
E por armas me deu
o bronze das palavras.
Meu nome é flecha. E perde-se
no pássaro. Começa
meu canto onde começa
a construção. Pastores
do tempo são meus dedos.
Caçadores de coisas
impossíveis. Eu canto
os dedos que transformam
e se transformam. Canto
as marítimas mãos
de Magalhães. As mãos
voadoras de Gagárine.
Procurai-me no mar
procurai-me no espaço.
Estou no centro da terra.
Meu nome é cinza. E espalha-se
no vento. Sou adubo
fermentação floresta.
E cintilo nas armas
Canto as armas e o Tempo.
As minhas armas o
meu tempo. E desarmado
pergunto à flor pergunto
ao vento: vistes lá
o meu país? E o meu
país está nas palavras.
Porque a Tribo me disse:
tu guardarás o fogo.
E por armas me deu
esta espada este canto.
In “O Canto e as Armas”
Publicações Dom Quixote
Manuel Alegre
(N.1932)
LETRA PARA UM HINO
É possível falar sem um nó na garganta.
É possível amar sem que venham proibir.
É possível correr sem que seja a fugir.
Se tens vontade de cantar não tenhas medo: canta.
É possível andar sem olhar para o chão.
É possível viver sem que seja de rastos.
Os teus olhos nasceram para olhar os astros.
Se te apetece dizer não, grita comigo: não!
É possível viver de outro modo.
É possível transformar em arma a tua mão.
É possível viver o amor. É possível o pão.
É possível viver de pé.
Não te deixes murchar. Não deixes que te domem.
É possível viver sem fingir que se vive.
É possível ser homem.
É possível ser livre, livre, livre.
In “O Canto e as Armas”
Publicações Dom Quixote
Manuel Alegre
N. 1936
ABRIL DE ABRIL
Era um Abril de amigo Abril de trigo
Abril de trevo e trégua e vinho e húmus
Abril de novos ritmos novos rumos.
Era um Abril comigo Abril contigo
ainda só ardor e sem ardil
Abril sem adjectivo Abril de Abril.
Era um Abril na praça Abril de massas
era um Abril na rua Abril a rodos
Abril de sol que nasce para todos.
Abril de vinho e sonho em nossas taças
era um Abril de clava Abril em acto
em mil novecentos e setenta e quatro.
Era um Abril viril Abril tão bravo
Abril de boca a abrir-se Abril palavra
esse Abril em que Abril se libertava.
Era um Abril de clava Abril de cravo
Abril de mão na mão e sem fantasmas
esse Abril em que Abril floriu nas armas.
In “30 Anos de Poesia”
Publicações Dom Quixote
Manuel Alegre
N.1936
CANÇÃO TÃO SIMPLES
Quem poderá domar os cavalos do vento
quem poderá domar este tropel
do pensamento
à flor da pele?
Quem poderá calar a voz do sino triste
que diz por dentro do que não se diz
a fúria em riste
do meu país?
Quem poderá proibir estas letras de chuva
que gota a gota escrevem nas vidraças
pátria viúva
a dor que passas?
Quem poderá prender os dedos farpas
que dentro da canção fazem das brisas
as armas harpas
que são precisas?
In “O Canto e as Armas”
Publicações Dom Quixote
Manuel Alegre
N. 1936
ABRIL DE SIM ABRIL DE NÃO
Eu vi Abril por fora e Abril por dentro
vi o Abril que foi e Abril de agora
eu vi Abril em festa e Abril lamento
Abril como quem ri como quem chora.
Eu vi chorar Abril e Abril partir
vi o Abril de sim e Abril de não
Abril que já não é Abril por vir
e como tudo o mais contradição.
Vi o Abril que ganha e Abril que perde
Abril que foi Abril e o que não foi
eu vi Abril de ser e de não ser.
Abril de Abril vestido (Abril tão verde)
Abril de Abril despido (Abril que dói)
Abril já feito. E ainda por fazer.
In “30 Anos de Poesia”
Publicações Dom Quixote
Manuel Alegre
N. 1936
EXPLICAÇÃO DO PAÍS DE ABRIL
País de Abril é o sítio do poema.
Não fica nos terraços da saudade
não fica nas longas terras. Fica exactamente aqui
tão perto que parece longe.
Tem pinheiros e mar tem rios
tem muita gente e muita solidão
dias de festa que são dias tristes às avessas
é rua e sonho é dolorosa intimidade.
Não procurem nos livros que não vem nos livros
País de Abril fica no ventre das manhãs
fica na mágoa de o sabermos tão presente
que nos torna doentes sua ausência.
País de Abril é muito mais que pura geografia
é muito mais que estradas pontes monumentos
viaja-se por dentro e tem caminhos veias
- os carris infinitos dos comboios da vida.
País de Abril é uma saudade de vindima
é terra e sonho e melodia de ser terra e sonho
território de fruta no pomar das veias
onde operários erguem as cidades do poema.
Não procurem na História que não vem na História.
País de Abril fica no sol interior das uvas
fica à distância de um só gesto os ventos dizem
que basta apenas estender a mão.
País de Abril tem gente que não sabe ler
os avisos secretos do poema.
Por isso é que o poema aprende a voz dos ventos
para falar aos homens do País de Abril.
Mais aprende que o mundo é do tamanho
que os homens queiram que o mundo tenha:
o tamanho que os ventos dão aos homens
quando sopram à noite no País de Abril.
In “Praça da Canção”
Publicações Dom Quixote
Manuel Alegre
N. 1936
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