Terça-feira, 31 de Agosto de 2021

Recordando... Guerra Junqueiro

ADORAÇÃO

 

Eu não te tenho amor simplesmente. A paixão

Em mim não é amor; filha, é adoração!

Nem se fala em voz baixa à imagem que se adora.

Quando da minha noite eu te contemplo, aurora,

E, estrela da manhã, um beijo teu perpassa

Em meus lábios, oh! quando essa infinita graça

do teu piedoso olhar me inunda, nesse instante

Eu sinto – virgem linda, inefável, radiante,

Envolta num clarão balsâmico da lua,

A minh'alma ajoelha, trémula, aos pés da tua!

Adoro-te!... Não és só graciosa, és bondosa:

Além de bela és santa; além de estrela és rosa.

Bendito seja o deus, bendita a Providência

Que deu o lírio ao monte e à tua alma a inocência,

O deus que te criou, anjo, para eu te amar,

E fez do mesmo azul o céu e o teu olhar!...

 

In "Poesias dispersas"

 

Guerra Junqueiro

(1850-1923)

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Segunda-feira, 1 de Março de 2021

Recordando... Guerra Junqueiro

PARASITAS

 

No meio duma feira, uns poucos de palhaços

Andavam a mostrar em cima dum jumento

Um aborto infeliz, sem mãos, sem pés, sem braços,

Aborto que lhes dava um grande rendimento.

 

Os magros histriões, hipócritas, devassos,

Exploravam assim a flor do sentimento.

E o monstro arregalava os grandes olhos baços,

Uns olhos sem calor e sem entendimento.

 

E toda a gente deu esmola aos tais ciganos;

Deram esmola até mendigos quase nus.

E eu, ao ver este quadro, apóstolos romanos.

 

Eu lembrei-me de vós, funâmbulos da Cruz,

Que andais pelo universo há mil e tantos anos

Exibindo, explorando o corpo de Jesus.

 

In “A Velhice do Padre Eterno”

Editora Livraria Minerva – Lisboa

 

Guerra Junqueiro

(1850-1923)

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Terça-feira, 31 de Outubro de 2017

Recordando... Guerra Junqueiro

A LÁGRIMA

 

Manhã de Junho ardente. Uma encosta escavada,  
Seca, deserta e nua, à beira duma estrada.  

 

Terra ingrata, onde a urze a custo desabrocha,  
Bebendo o sol, comendo o pó, mordendo a rocha.  

 

Sobre uma folha hostil duma figueira brava,  
Mendiga que se nutre a pedregulho e lava, 

 

A aurora desprendeu, compassiva e divina, 
Uma lágrima etérea, enorme e cristalina. 

 

Lágrima tão ideal, tão límpida que, ao vê-la,  
De perto era um diamante e de longe uma estrela.  

 

Passa um rei com o seu cortejo de espavento,  
Elmos, lanças, clarins, trinta pendões ao vento.  

 

- «No seu diadema, disse o rei, quedando a olhar, 
Há safiras sem conta e brilhantes sem par. 

 

«Há rubis orientais, sangrentos e doirados,  
Como beijos d'amor, a arder, cristalizados.  

 

«Há pérolas que são gotas de mágoa imensa,  
Que a lua chora e verte, e o mar gela e condensa.  

 

«Pois, brilhantes, rubis e pérolas de Ofir 
Tudo isso eu dou, e vem, ó lágrima, fulgir 

 

«Nesta c'roa orgulhosa, olímpica, suprema,  
Vendo o Globo a meus pés do alto do teu diadema!» 

 

E a lágrima celeste, ingénua e luminosa,  
Ouviu, sorriu, tremeu, e quedou silenciosa. 

 

Couraçado de ferro, épico e deslumbrante,  
Passa no seu ginete um cavaleiro andante.  

 

E o cavaleiro diz à lágrima irisada:  
«Vem brilhar, por Jesus, na cruz da minha espada!  

 

«Far-te-ei relampejar, de vitória em vitória,  
Na Terra Santa, à luz da Fé, ao sol da Glória!  

 

«E à volta há-de guardar-te a minha noiva, ó astro,  
Em seu colo auroreal de rosa e de alabastro.  

 

«E assim alumiarás com teu vivo esplendor 
Mil combates de heróis e mil sonhos d'amor!» 

 

E a lágrima celeste, ingénua e luminosa,   
Ouviu, sorriu, tremeu e quedou silenciosa.  

 

Montado numa mula escura, de caminho,  
Passa um velho judeu, avarento e mesquinho.  

 

Mulas de carga atrás levavam-lhe o tesoiro:  
Grandes arcas de cedro, abarrotadas d’oiro.  

 

E o velhinho andrajoso e magro como um junco,  
O crânio calvo, o olhar febril, o bico adunco,  

 

Vendo a estrela, exclamou: «Oh Deus, que maravilha!  
Como ela resplandece e tremeluz e brilha!  

 

«Com meu oiro em montão podiam-se comprar 
Os impérios dos reis e os navios do mar.  

 

E por esse diamante esplêndido trocara 
Todo o meu oiro imenso a minha mão avara!»  

 

E a lágrima celeste, ingénua e luminosa,  
Ouviu, sorriu, tremeu, e quedou silenciosa.  

 

Debaixo da figueira então um cardo agreste, 
Já ressequido, disse à lágrima celeste: 

 

«A terra onde o lilás e a balsamina medra 
Para mim teve sempre um coração de pedra.  

 

«Se, a queixar-me, ergo ao céu os braços por acaso,  
O céu manda-me em paga o fogo em que me abraso.  

 

«Nunca junto de mim, ulcerado de espinhos,  
Ouvi trinar, gorjear a música dos ninhos.  

 

«Nunca junto de mim ranchos de namoradas 
Debandaram, cantando, em noites estreladas... 

 

«Voa a ave no azul e passa longe o amor,  
Porque ai, nunca dei sombra e nunca tive flor!... 

 

Ó lágrima de Deus, ó astro, ó gota d’água,  
Cai na desolação desta infinita mágoa!»  

 

E a lágrima celeste, ingénua e luminosa,  
Tremeu, tremeu, tremeu... e caiu silenciosa!... 

 

E algum tempo depois o triste cardo exangue,  
Reverdecendo, dava uma flor cor de sangue, 

 

Dum roxo macerado e dorido e desfeito, 
Como as chagas que tem Nosso Senhor no peito... 

 

E ao cálix virginal da pobre flor vermelha 
Ia buscar, zumbindo, o mel doirado a abelha!...

           

[25 de Março de 1888]  

                                                                                       

In "Poesias Dispersas"

Edições Vercial (2013)

 

Guerra Junqueiro

(1850-1923)

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Quarta-feira, 31 de Maio de 2017

Recordando... Guerra Junqueiro

REGRESSO AO LAR

 

Ai, há quantos anos que eu parti chorando

deste meu saudoso, carinhoso lar!...

Foi há vinte?... Há trinta?... Nem eu sei já quando!...

Minha velha ama, que me estás fitando,

canta-me cantigas para me eu lembrar!...

 

Dei a volta ao mundo, dei a volta à vida...

Só achei enganos, decepções, pesar...

Oh, a ingénua alma tão desiludida!...

Minha velha ama, com a voz dorida.

canta-me cantigas de me adormentar!...

 

Trago de amargura o coração desfeito...

Vê que fundas mágoas no embaciado olhar!

Nunca eu saíra do meu ninho estreito!...

Minha velha ama, que me deste o peito,

canta-me cantigas para me embalar!...

 

Pôs-me Deus outrora no frouxel do ninho

pedrarias de astros, gemas de luar...

Tudo me roubaram, vê, pelo caminho!...

Minha velha ama, sou um pobrezinho...

Canta-me cantigas de fazer chorar!...

 

Como antigamente, no regaço amado

(Venho morto, morto!...), deixa-me deitar!

Ai o teu menino como está mudado!

Minha velha ama, como está mudado!

Canta-lhe cantigas de dormir, sonhar!...

 

Canta-me cantigas manso, muito manso...

tristes, muito tristes, como à noite o mar...

Canta-me cantigas para ver se alcanço

que a minha alma durma, tenha paz, descanso,

quando a morte, em breve, ma vier buscar!

 

In “Os Simples”

 

Guerra Junqueiro

(1850-1923)

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Quarta-feira, 25 de Fevereiro de 2015

Recordando... Guerra Junqueiro

A MOLEIRINHA

 

Pela estrada plana, toque, toque, toque,

Guia o jumentinho uma velhinha errante.

Como vão ligeiros, ambos a reboque,

Antes que anoiteça, toque, toque, toque,

A velhinha atrás, o jumentito adiante!...

 

Toque, toque, a velha vai para o moinho,

Tem oitenta anos, bem bonito rol!...

E contudo alegre como um passarinho,

Toque, toque, e fresca como o branco linho,

De manhã nas relvas a corar ao sol.

 

Vai sem cabeçada, em liberdade franca,

O jerico ruço duma linda cor;

Nunca foi ferrado, nunca usou retranca,

Tange-o, toque, toque, a moleirinha branca

Com o galho verde duma giesta em flor.

 

Vendo esta velhita, encarquilhada e benta,

Toque, toque, toque, que recordação!

Minha avó ceguinha se me representa...

Tinha eu seis anos, tinha ela oitenta,

Quem me fez o berço fez-lhe o seu caixão!...

 

Toque, toque, toque, lindo burriquito,

Para as minhas filhas quem mo dera a mim!

Nada mais gracioso, nada mais bonito!

Quando a virgem pura foi para o Egipto,

Com certeza ia num burrico assim.

 

Toque, toque, é tarde, moleirinha santa!

Nascem as estrelas, vivas, em cardume...

Toque, toque, toque, e quando o galo canta,

Logo a moleirinha, toque, se levanta,

P’ra vestir os netos, p’ra acender o lume...

 

Toque, toque, toque, como se espaneja,

Lindo o jumentinho pela estrada chã!

Tão ingénuo e humilde, dá-me, salvo seja,

Dá-me até vontade de o levar à igreja,

Baptizar-lhe a alma, p’ra a fazer cristã!

 

Toque, toque, toque, e a moleirinha antiga,

Toda, toda branca, vai numa frescata...

Foi enfarinhada, sorridente amiga,

Pela mó da azenha com farinha triga,

Pelos anjos loiros com luar de prata!...

 

Toque, toque, como o burriquito avança!

Que prazer d’outrora para os olhos meus!

Minha avó contou-me quando fui criança,

Que era assim tal qual a jumentinha mansa

Que adorou nas palhas o menino Deus...

 

Toque, toque, é noite... ouvem-se ao longe os sinos,

Moleirinha branca, branca de luar!...

Toque, toque, e os astros abrem diamantinos,

Como estremunhados querubins divinos,

Os olhitos meigos para a ver passar...

 

Toque, toque, e vendo sideral tesoiro,

Entre os milhões d’astros o luar sem véu,

O burrico pensa: Quanto milho loiro!

Quem será que mói estas farinhas d’oiro

Com a mó de jaspe que anda além no Céu!

 

in "Os Simples"

 

Guerra Junqueiro

(1850 – 1923)

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Sexta-feira, 7 de Outubro de 2011

Recordando... Guerra Junqueiro

OS POBREZINHOS

 

Pobres de pobres são pobrezinhos,

Almas sem lares, aves sem ninho...

 

Passam em bandos, em alcateias,

Pelas herdades, pelas aldeias.

 

É em Novembro, rugem procelas...

Deus nos acuda, nos livre delas!

 

Vêm por desertos, por estevais,

Mantas aos ombros, grandes bornais.

 

Como farrapos, coisas sombrias,

Trapos levados nas ventanias...

 

Filhos de Cristo, filhos de Adão,

Buscam no mundo côdeas de pão!

 

Há-os ceguinhos, em treva densa,

D’olhos fechados desde nascença

 

Há-os com f’ridas esburacadas,

Roxas de lírios, já gangrenadas.

 

Uns de voz rouca, grandes bordões,

Quem sabe lá se serão ladrões!...

 

Outros humildes, riso magoado,

Lembram Jesus que ande disfarçado...

 

Enjeitadinhos, rotos, sem pão,

Tremem maleitas d’olhos no chão...

 

Campos e vinhas!... hortas com flores!...

Ai, que ditosos os lavradores!

 

Olha, fumegam tectos e lares...

Fumo tão lindo!... branco nos ares!...

 

Batem às portas, erguem-se as mães,

Choram meninos, ladram os cães...

 

Rezam e cantam, levam a esmola,

Vinho no bucho, pão na sacola.

 

Fruto da horta, caldo ou toucinho,

Dão sempre os pobres a um pobrezinho.

 

Um que tem chagas, velho coitado,

Quer ligaduras ou mel-rosado.

 

Outro, promessa feita a Maria,

Deitam-lhe azeite na almotolia.

 

Pelos alpendres, pelos currais,

Dormem deitados como animais.

 

Em caravanas, em alcateias,

Vão por herdades, vão por aldeias...

 

Sabem cantigas, oraçõezinhas,

Contos d’estrelas, rei e rainhas....

 

Choram cantando, penam rezando,

Ai, só a morte sabe até quando!

 

Mas no outro mundo Deus lhes prepara

Leito o mais alvo, ceia a mais rara...

 

Os pés doridos lhos lavarão

Santos e santas, com devoção!

 

Para lavá-los perfumaria

Em gomil d’ouro, d’ouro a bacia,

 

E embalsamados, transfigurados,

Túnicas brancas, como em noivados,

 

Viverão sempre na eterna luz

Pobres benditos, amem, Jesus!...

 

 

In "Os Simples"

 

Guerra Junqueiro

1850 – 1923

 

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