RECADO
Se eu morrer longe
sepulta-me no mar
dentro das algas ignorantes
e lúcidas.
Cobre o meu rosto de palavras
antigas
e de música.
Deixa em meus dedos
a memória mais recente
de outras coisas inúmeras
e nos meus cabelos
o incerto movimento
do vento e da chuva.
Eu vogarei sob as estrelas
com pálidas luzes entre os cílios
e pequenos caramujos
entrarão nos meus ouvidos.
Estarei assim idêntica
a todos os motivos.
In “Música Ausente”
Glória de Sant'Anna
(1925-2009)
MOTIVO
Tudo o que vês
não é nada:
ou uma nuvem
ou uma palavra.
Tudo o que ouves
nada mais é:
o vento é lesto
e corre breve.
O que não vês
nem sabes mesmo
é que importava
se houvesse tempo.
In “Amaranto”
Glória de Sant'Anna
(1925-2009)
AFIRMAÇÃO
A essência das coisas é senti-las
tão densas e tão claras,
que não possam conter-se por completo
nas palavras.
A essência das coisas é nutri-las
tão de alegria e mágoa,
que o silêncio se ajuste à sua forma
sem mais nada.
In “Um Denso Azul Silêncio”
Glória de Sant'Anna
(1925-2009)
POEMA DOS JOVENS CONSCIENTES
Nós somos o que esperamos
todos ainda iguais aos mortos recentes
mas cobertos das cicatrizes
colhidas na seiva dos ramos molhados de sangue
na alta lua esgarçada das vigílias
no último eco mortífero e vibrante
Nossos cabelos rescendem à cinza que pulsa no vento
há um claro travo de sal em nossa boca
e trazemos nos olhos
a transparência das manhas tintas de medo
Sabemos
como vibra uma lança de dentro do tempo
a crescente medida dos gumes cintilantes
e o peso
das granadas soltas dos longos dedos tépidos
e desdobradas ao limite do inferno
Nós somos o que esperamos
todos ainda iguais aos mortos recentes
ultrapassar os trilhos calcinados
em filas densas ombro a ombro de mãos nuas
através do puro silêncio dos horizontes magoados
(sonhando trigo verde que toque a nossa face)
em busca da palavra
que purifique o sal dos nossos lábios
Cabo Delgado – Pemba – 1970
In “Revista Colóquio/Letras” – Poemas
N.º 36 de Março.1977
Fundação Calouste Gulbenkian
Glória de Sant'Anna
1925 – 2009
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