INÊS DE MANTO
Teceram-lhe o manto
para ser de morta
assim como o pranto
se tece na roca
Assim como o trono
e como o espaldar
foi igual o modo
de a chorar
Só a morte trouxe
todo o veludo
no corte da roupa
no cinto justo
Também como o choro
lhe deram um estrado
um firmal de ouro
o corpo exumado
O vestido dado
como o choravam
era de brocado
não era escarlata
Também de pranto
a vestiram toda
era como um manto
mais fina que a roupa
In “Barcas Novas”
Editora Ulisseia
Fiama Hasse Pais Brandão
(1938-2007)
SEBASTIÃO REI
Não chegou de manto
nem com lenço e pranto
Não entrou a barra
com pendão e amarra
Não veio em ginete
com a sua gente
Não voltou da guerra
com os mortos dela
Não voltou da púrpura
com ferida ou sutura
Não voltou de coroa
nem ceptro a Lisboa
Não veio da batalha
com trajo de gala
Não trouxe burel
nem viseira e elmo
Nem trajou de estopa
nem demandou porto
Não veio doente
nem com mantimentos
Não chegou na frota
ou deu à costa
Nem alçou pendão
nem selo de mão
Nem veio às matinas
com saio de linho
Nem calçou pelica
com fivela e vira
Não voltou ao cais
nem em mês ou ano
Perdeu arrais
e tendas de pano
In “Barcas Novas”
Editora Ulisseia
Fiama Hasse Pais Brandão
1938 – 2007
NA RUA DAS MÓNICAS
Nos meus vinte anos,
almoçar em casa de Sofia
era ouvir ferver em cachão, frigir
na cozinha, arfar a cafeteira da poesia.
Era ver a ama de Sofia,
e de todos os filhos, de muitos versos,
cuidar de muitas gerações de memórias,
no lar desses versos tão caseiros.
E era beber, ali, na mesa, uma água
que, mais do que a da torneira,
concitou o mar para cada copo.
Era olhar um rosto de coral
(o que exorciza as Fúrias, na cozinha)
um rosto de mar novo, de geografia.
Era escutar as palavras da boca
do vocábulo grego para a sabedoria
o que me confirma o poder dos nomes,
ao serem Verbo, sobre os seres e as coisas.
Era sentar-me, lado a lado,
no espaço irradiante da volúvel lareira,
no Outono apagada, na Primavera acesa,
e com o fogaréu alimentado
por papéis venais de outra política
(que não a da sua humanidade),
que a prudência mandava destruir no fogo.
Era entrar e sair pela porta das Mónicas,
a das mulheres congregadas
sob invocação da mãe de Agostinho,
o que para mim celebrava também
o amor da mãe, da velha ama, da Poesia.
In “Cenas Vivas”
Relógio d’Água Editores – 2000
Fiama Hasse Pais Brandão
1938 – 2007
POEMA PARA A PADEIRA QUE ESTAVA
A FAZER PÃO ENQUANTO SE TRAVAVA
A BATALHA DE ALJUBARROTA
Está sobre a mesa e repousa
o pão
como uma arma de amor
em repouso
As armas guardam no campo
todo o campo
Já os mortos não aguardam
e repousam
Dentro de casa ela aguarda
abrir o forno
Ela em mão que prepara
o amor
Pelos campos todos armas
não repousam
mais os mortos
ter amor
Sobre a mesa põe as mãos
pôs o pão
Fora de casa o rumor
sem repouso
Ela agora abre o fogo
para o pão
em repouso ela ouve os mortos
lá de fora
Lá de fora entram armas
os homens
As mãos dela não repousam
acolhem
Sobre a mesa pôs o pão
arma de paz
Contra as armas da batalha
arma de mão
Contra a batalha das armas
não repousa
Caem contra a mesa os mortos
contra o forno
Outra paz não defende ela
que a do pão
Defende a paz que é da casa
e das mãos
In “Barcas Novas”
Editora Ulisseia
Fiama Hasse Pais Brandão
1938 – 2007
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