ATÉ QUE UM DIA...
Meus versos eram rosas, lírios, heras,
borboletas, regatos, cotovias
cantando suas doces melodias,
anjos, sereias, ninfas e quimeras.
Meus versos eram pombas entre as feras
e, na festa das horas e dos dias,
ia dançando penas e alegrias
e o ano tinha quatro primaveras.
E a festa continua... é também festa
o cardo e a urze, o tojo, a murta, a giesta,
a chuva no beiral, o vento Norte,
o gosto a mar, a lágrimas, a sal,
até que um dia a vida, a bem ou mal,
exausta de cantar me empreste à morte.
In "E Eu, Saudosa, Saudosa" - 1973
Fernanda de Castro
(1900-1994)
O SEGREDO É AMAR
O segredo é amar. Amar a Vida
com tudo o que há de bom e mau em nós.
Amar a hora breve e apetecida,
ouvir os sons em cada voz
e ver todos os céus em cada olhar.
Amar por mil razões e sem razão.
Amar, só por amar,
com os nervos, o sangue, o coração.
Viver em cada instante a eternidade
e ver, na própria sombra, claridade.
O segredo é amar, mas amar com prazer,
sem limites, fronteiras, horizonte.
Beber em cada fonte,
florir em cada flor,
nascer em cada ninho,
sorver a terra inteira como o vinho.
Amar o ramo em flor que há-de nascer,
de cada obscura, tímida raiz.
Amar em cada pedra, em cada ser,
Amar o tronco, a folha verde,
amar cada alegria, cada mágoa,
pois um beijo de amor jamais se perde
e cedo refloresce em pão, em água!
In "Trinta e Nove Poemas"
Editorial Império
Fernanda de Castro
(1900-1994)
NÃO FORA O MAR!
Não fora o mar,
e eu seria feliz na minha rua,
neste primeiro andar da minha casa
a ver, de dia, o sol, de noite a lua,
calada, quieta, sem um golpe de asa.
Não fora o mar,
e seriam contados os meus passos,
tantos para viver, para morrer,
tantos os movimentos dos meus braços,
pequena angústia, pequeno prazer.
Não fora o mar,
e os seus sonhos seriam sem violência
como irisadas bolas de sabão,
efémero cristal, branca aparência,
e o resto — pingos de água em minha mão.
Não fora o mar,
e este cruel desejo de aventura
seria vaga música ao sol pôr
nem sequer brasa viva, queimadura,
pouco mais que o perfume duma flor.
Não fora o mar
e o longo apelo, o canto da sereia,
apenas ilusão, miragem,
breve canção, passo breve na areia,
desejo balbuciante de viagem.
Não fora o mar
e, resignada, em vez de olhar os astros
tudo o que é alto, inacessível, fundo,
cimos, castelos, torres, nuvens, mastros,
iria de olhos baixos pelo mundo.
Não fora o mar
e o meu canto seria flor e mel,
asa de borboleta, rouxinol,
e não rude halali, garra cruel,
Águia Real que desafia o sol.
Não fora o mar
e este potro selvagem, sem arção,
crinas ao vento, com arreio,
meu altivo, indomável coração,
Não fora o mar
e comeria à mão,
não fora o mar
e aceitaria o freio.
In "Trinta e Nove Poemas"
Edições Ocidente - Editorial Império
Fernanda de Castro
(1900-1994)
CANTA. BUSCA NA VIDA O QUE É PERFEITO
Canta. Busca na vida o que é perfeito.
Olha o sol e não queiras outro guia.
Sonha com a noite e absorve, aspira o dia,
tal uma flor que te florisse ao peito.
Da terra maternal, faz o teu leito.
Respira a terra e bebe o luar. Confia.
Faz de cada pena uma alegria
e um bem de cada mal insatisfeito.
Colhe todas as flores do jardim,
todos os frutos do pomar e enfim
colhe todos os sonhos do universo.
Procura eternizar cada momento,
Fecha os olhos a todo o sofrimento
E terás feito a carne do teu verso.
In “Daquém e Dalém Alma”
Editorial Império
Fernanda de Castro
(1900-1994)
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