CANÇÃO
Tu eras neve.
Branca neve acariciada.
Lágrima e jasmim
no limiar da madrugada.
Tu eras água.
Água do mar se te beijava.
Alta torre, alma, navio,
adeus que não começa nem acaba.
Eras o fruto
nos meus dedos a tremer.
Podíamos cantar
ou voar, podíamos morrer.
Mas do nome
que maio decorou,
nem a cor
nem o gosto me ficou.
In “As palavras Interditas - Até Amanhã”
Assírio & Alvim
Eugénio de Andrade **
(1923-2005)
** Pseudónimo de José Fontinhas
RETRATO
No teu rosto começa a madrugada.
Luz abrindo,
de rosa em rosa,
transparente e molhada.
Melodia
distante mas segura;
irrompendo da terra,
cálida, madura.
Mar imenso,
praia deserta, horizontal e calma.
Sabor agreste.
Rosto da minha alma!
in "Os Amantes Sem Dinheiro"
8ª Edição 1980
Editora Limiar
Eugénio de Andrade **
(1923-2005)
** Pseudónimo de José Fontinhas
SERÃO PALAVRAS
Diremos prado bosque
primavera,
e tudo o que dissermos
é só para dizermos
que fomos jovens
Diremos mãe amor
um barco,
e só diremos
que nada há
para levar ao coração
Diremos terra mar
ou madressilva,
mas sem música no sangue
serão palavras só,
e só palavras, o que diremos.
In “Mar de Setembro” (1961)
Eugénio de Andrade **
(1923-2005)
** Pseudónimo de José Fontinhas
METAMORFOSES DA CASA
Ergue-se aérea pedra a pedra
a casa que só tenho no poema.
A casa dorme, sonha no vento
a delícia súbita de ser mastro.
Como estremece um torso delicado,
assim a casa, assim um barco.
Uma gaivota passa e outra e outra,
a casa não resiste: também voa.
Ah, um dia a casa será bosque,
à sua sombra encontrarei a fonte
onde um rumor de água é só silêncio.
In “Ostinato Rigore”
Assírio & Alvim
Eugénio de Andrade **
(1923-2005)
** Pseudónimo de José Fontinhas
O ANJO DE PEDRA
Tinha os olhos abertos mas não via.
O corpo era todo saudade
De alguém que o modelara e não sabia
Que o tocara de maio e claridade.
Parava o seu gesto onde pára tudo:
No limiar das coisas por saber
- e ficara surdo e cego e mudo
Para que tudo fosse grave no seu ser
In “As Mãos e os Frutos”
Editora Limiar – 9.ª Edição – 1980
Eugénio de Andrade **
(1923 - 2005)
** Pseudónimo de José Fontinhas
Soneto XXV
Shelley sem anjos e sem pureza,
aqui estou à tua espera nesta praça,
onde não há pombos mansos mas tristeza
e uma fonte por onde a água já não passa.
Das árvores não te falo pois estão nuas;
das casas não vale a pena porque estão
gastas pelo relógio e pelas luas
e pelos olhos de quem espera em vão.
De mim podia falar-te,mas não sei
que dizer-te desta história de maneira
que te pareça natural a minha voz.
Só sei que passo aqui a tarde inteira
tecendo estes versos e a noite
que te há-de trazer e nos há-de de deixar sós
(As Mãos e os Frutos)
In “Antologia Breve”
5ª ed. – Outubro.1985
Editora Limiar
Eugénio de Andrade **
(1923 – 2005)
** Pseudónimo de José Fontinhas
ADEUS
Já gastámos as palavras pela rua, meu amor,
e o que nos ficou não chega
para afastar o frio de quatro paredes.
Gastámos tudo menos o silêncio.
Gastámos os olhos com o sal das lágrimas,
gastámos as mãos à força de as apertarmos,
gastámos o relógio e as pedras das esquinas
em esperas inúteis.
Meto as mãos nas algibeiras e não encontro nada.
Antigamente tínhamos tanto para dar um ao outro;
era como se todas as coisas fossem minhas:
quanto mais te dava mais tinha para te dar.
Às vezes tu dizias: os teus olhos são peixes verdes.
E eu acreditava.
Acreditava,
porque ao teu lado
todas as coisas eram possíveis.
Mas isso era no tempo dos segredos,
no tempo em que o teu corpo era um aquário,
era no tempo em que os meus olhos
eram realmente peixes verdes.
Hoje são apenas os meus olhos.
É pouco, mas é verdade,
uns olhos como todos os outros.
Já gastámos as palavras.
Quando agora digo: meu amor,
já não se passa absolutamente nada.
E, no entanto, antes das palavras gastas,
tenho a certeza
de que todas as coisas estremeciam
só de murmurar o teu nome
no silêncio do meu coração.
Não temos já nada para dar.
Dentro de ti
não há nada que me peça água.
O passado é inútil como um trapo.
E já te disse: as palavras estão gastas.
Adeus.
(Os Amantes Sem Dinheiro)
In “Antologia Breve”
Editora Limiar – Outubro.1985
Eugénio de Andrade
1923 – 2005
EM LOUVOR DO FOGO
Um dia chega
de uma extrema doçura:
tudo arde.
Arde a luz
nos vidros da ternura.
As aves,
no branco
labirinto da cal.
As palavras ardem,
e a púrpura das naves.
O vento,
onde tenho casa
à beira do outono.
O limoeiro, as colinas.
Tudo arde
na extrema e lenta
doçura da tarde.
In “Obscuro Domínio”
Editorial Inova – 1971
Eugénio de Andrade
1923 – 2005
PROCURO-TE
Procuro a ternura súbita,
os olhos ou o sol por nascer
do tamanho do mundo,
o sangue que nenhuma espada viu,
o ar onde a respiração é doce,
um pássaro no bosque
com a forma de um grito de alegria.
Oh, a carícia da terra,
a juventude suspensa,
a fugidia voz da água entre o azul
do prado e de um corpo estendido.
Procuro-te: fruto ou nuvem ou música.
Chamo por ti, e o teu nome ilumina
as coisas mais simples:
o pão e a água,
a cama e a mesa,
os pequenos e dóceis animais,
onde também quero que chegue
o meu canto e a manhã de maio.
Um pássaro e um navio são a mesma coisa
quando te procuro de rosto cravado na luz.
Eu sei que há diferenças,
mas não quando se ama,
não quando apertamos contra o peito
uma flor ávida de orvalho.
Ter só dedos e dentes é muito triste:
dedos para amortalhar crianças,
dentes para roer a solidão,
enquanto o verão pinta de azul o céu
e o mar é devassado pelas estrelas.
Porém eu procuro-te.
Antes que a morte se aproxime, procuro-te.
Nas ruas, nos barcos, na cama,
com amor, com ódio, ao sol, à chuva,
de noite, de dia, triste, alegre - procuro-te.
In “As Palavras Interditas”
Centro Bibliográfico – Lisboa
Eugénio de Andrade
1923 – 2005
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