EPITÁFIO
Dos poetas do mundo ora aqui jaz
O que se pensou como o melhor deles;
Na vida não teve alegria ou paz.
Muitas canções de loucura encheu,
E quando quer que ele tenha morrido
Foi já de mais o tempo que viveu.
Num egotismo viveu sem razão,
Na sua alma em tumulto e desordem
Pensar e sentir, perpétua cisão.
Um inimigo em cada coisa tida
E, sem coragem, seu papel cumpriu
No penar infindável desta vida.
Da dor e do medo um escravo certo,
E pensamentos incoerentes teve
E desejos da loucura perto.
Por artes do mal, aqueles que amou
Tratou pior do que seus inimigos;
Mas em si o pior inimigo achou.
Só de si mesmo se fez seu cantar,
Sempre incapaz de modesto ser,
Fechado em seu louco imaginar.
Todo o seu penar sem esforço ou valia,
Vazios de sentido os receios e dores
Que ignóbeis foram na maioria.
Vil e sem valor assim seu pesar;
Embora em versos mais amargos que ódio
A amarga alma não pôde expressar.
Embora capaz de chorar de ternura,
Era, contudo, miserável e mau —
Mas ninguém pareceu ver nele a loucura.
Que mente saudável não vá poluir
Sua campa; mas, por condizentes,
Traidor e prostituta poderão ir;
Ébrio e dissoluto podem passar
Por ali, depressa, não vão supor
Talvez que o prazer é apenas ar.
Toda a fraca e execrável mente
Que, em corrupção, torturou o homem
Aqui terá seu mestre consciente,
Consciente, pois nele pôde dizer
Que loucura e mal foram o que foram,
Mas que de nenhum se quis desfazer.
Passai pois, ali, quem puder chorar;
Que a podridão trabalhe enquanto, forte,
O vento as folhas mortas arrastar.
Ao seu irmão na terra a dormitar
Que nem sequer em imaginação
O nome de Deus venha perturbar.
Que tenha p'ra sempre a paz conseguido
Longe dos olhos e bocas dos homens
E do que deles o fez dividido.
Ele foi um ser por Deus trabalhado
E ao pecado já de ter vivido
Juntou ele o crime de ter pensado.
1907
In “Poesia”
Edição e tradução de Luísa Freire
Assírio & Alvim – 1999
Alexander Search
Heterónimo de Fernando Pessoa (1888-1935)
. Mais poesia em
. Eu li...
. Recordando... Alexander S...