CASA
Tentei fugir da mancha mais escura
que existe no teu corpo, e desisti.
Era pior que a morte o que antevi:
era a dor de ficar sem sepultura.
Bebi entre os teus flancos a loucura
de não poder viver longe de ti:
és a sombra da casa onde nasci,
és a noite que à noite me procura.
Só por dentro de ti há corredores
e em quartos interiores o cheiro a fruta
que veste de frescura a escuridão.
Só por dentro de ti rebentam flores.
Só por dentro de ti a noite escuta
o que sem voz me sai do coração.
In “Obra Poética,1948-1988”
Editorial Presença
David Mourão-Ferreira
(1927-1996)
TERNURA
Desvio dos teus ombros o lençol,
que é feito de ternura amarrotada,
da frescura que vem depois do sol,
quando depois do sol não vem mais nada...
Olho a roupa no chão: que tempestade!
Há restos de ternura pelo meio,
como vultos perdidos na cidade
nde uma tempestade sobreveio...
Começas a vestir-te, lentamente,
e é ternura também que vou vestindo,
para enfrentar lá fora aquela gente
que da nossa ternura anda sorrindo...
Mas ninguém sonha a pressa com que nós
a despimos assim que estamos sós!
In "Infinito Pessoal"
Guimarães Editores
David Mourão-Ferreira
(1927-1996)
E POR VEZES
E, por vezes, as noites duram meses
E, por vezes, os meses oceanos
E, por vezes, os braços que apertamos
Nunca mais são os mesmos. E, por vezes,
Encontramos de nós em poucos meses
O que a noite nos fez em muitos anos
E, por vezes, fingimos que lembramos
E, por vezes, lembramos que, por vezes
Ao tomarmos o gosto aos oceanos
Só o sarro das noites, não dos meses
Lá no fundo dos copos encontramos
E, por vezes, sorrimos ou choramos
E, por vezes, por vezes, ah! Por vezes,
num segundo se evolam tantos anos.
In “Matura Idade”
Editora Arcádia
David Mourão-Ferreira
(1927-1996)
PRESÍDIO
Nem todo o corpo é carne... Não, nem todo.
Que dizer do pescoço, às vezes mármore,
às vezes linho, lago, tronco de árvore,
nuvem, ou ave, ao tacto sempre pouco...?
E o ventre, inconsistente como o lodo?...
E o morno gradeamento dos teus braços?
Não, meu amor... Nem todo o corpo é carne:
é também água, terra, vento, fogo...
É sobretudo sombra à despedida;
onda de pedra em cada reencontro;
no parque da memóra o fugidio
vulto da Primavera em pleno Outono...
Nem só de carne é feito este presídio,
pois no teu corpo existe o mundo todo!
In "Eros de Passagem, Poesia Erótica Contemporânea",
Selecção e prefácio de Eugénio de Andrade,
Ed. Campo das Letras - 1997
David Mourão-Ferreira
(1927 - 1996)
LADAINHA DOS PÓSTUMOS NATAIS
Há-de vir um Natal e será o primeiro
em que se veja à mesa o meu lugar vazio
Há-de vir um Natal e será o primeiro
em que hão-de me lembrar de modo menos nítido
Há-de vir um Natal e será o primeiro
em que só uma voz me evoque a sós consigo
Há-de vir um Natal e será o primeiro
em que não viva já ninguém meu conhecido
Há-de vir um Natal e será o primeiro
em que nem vivo esteja um verso deste livro
Há-de vir um Natal e será o primeiro
em que terei de novo o Nada a sós comigo
Há-de vir um Natal e será o primeiro
em que nem o Natal terá qualquer sentido
Há-de vir um Natal e será o primeiro
em que o Nada retome a cor do Infinito
In "Cancioneiro de Natal”
Verbo Editora
David Mourão-Ferreira
1927 – 1996
POESIA DE AMOR
Vieram as aves negras em teu nome,
Secas folhas de plátano e de tília...
Amargamente, a fonte segredou-me
Tudo quanto eu sabia
Da sorte de Marília;
E que Dirceu
Poderei ser eu
- Tão infeliz! - nesta prisão sombria.
Ausente embora, continuo
A endereçar-te mil endechas.
Não sei mais nada: sei amor. Assim destruiu,
Pela canção doentia
Coloração das minhas queixas.
Bárbara escrava?
Que me importava?
Além do amor, o meu amor quer melodia.
Cantei às flores do pinho, verde e vivo;
Cantei nas margens verdes das ribeiras.
- Quando hás-de ver que foste só motivo
Para falsas canções tão verdadeiras?
In “Tempestade de Verão”
Guimarães Editores
David Mourão-Ferreira
1927 – 1996
NATAL, E NÃO DEZEMBRO
Entremos, apressados, friorentos,
Numa gruta, no bojo de um navio,
Num presépio, num prédio, num presídio,
No prédio que amanhã for demolido...
Entremos, inseguros, mas entremos.
Entremos, e depressa, em qualquer sítio,
Porque esta noite chama-se Dezembro,
Porque sofremos, porque temos frio.
Entremos, dois a dois: somos duzentos,
Duzentos mil, doze milhões de nada.
Procuremos o rastro de uma casa,
A cave, a gruta, o sulco de uma nave...
Entremos, despojados, mas entremos.
De mãos dadas talvez o fogo nasça,
Talvez seja Natal e não Dezembro,
Talvez universal a consoada.
In “Cancioneiro do Natal”
(Prémio Nacional de Poesia – 1971)
Edições Rolim – 1986
David Mourão-Ferreira
1927 – 1996
CANÇÃO AMARGA
Que importa o gesto não ser bem
o gesto grácil que terias?
– Importa amar, sem ver a quem...
Ser mau ou bom, conforme os dias.
Agora, tu só entrevista,
quantas imagens me trouxeste!
Mas é preciso que eu resista
e não acorde um sonho agreste.
Que passes tu! Por mim, bem sei
que hei-de aceitar o que vier,
pois tarde ou cedo deverei
de sonho e pasmo apodrecer.
Que importa o gesto não ser bem
o gesto grácil que terias?
– Importa amar, sem ver a quem...
Ser infeliz, todos os dias!
In "A Secreta Viagem"
Edições Távola Redonda
David Mourão-Ferreira
1927 – 1996
PRAIA DO ENCONTRO
Esta imaginação de sal e duna,
inquieta e movediça como a areia,
ergue, isolada, a praia, mais a espuma
que sereia nenhuma
saboreia…
Quisesses tomar tu este veleiro,
que em secreto estaleiro construí,
sem velas, sem cordame, sem madeira
- mas branco!, e todo inteiro
para ti…
Brilha uma luz de morte sobre o porto
saído mesmo agora da memória…
Ali estarei, à tua espera, morto,
ou vivo em minha morte
transitória…
Combinado. Que eu juro não faltar!
Contrário de Tristão, renascerei,
se pressentir, aérea, sobre o mar,
a sombra singular
do barco que te dei.
In "Tempestade de Verão" – Obra Poética
Editorial Presença
David Mourão-Ferreira
1927 – 1996
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