CONSERTO A PALAVRA…
Conserto a palavra com todos os sentidos em silêncio
Restauro-a
Dou-lhe um som para que ela fale por dentro
Ilumino-a
Ela é um candeeiro sobre a minha mesa
Reunida numa forma comparada à lâmpada
A um zumbido calado momentaneamente em exame
Ela não se come como as palavras inteiras
Mas devora-se a si mesma e restauro-a
A partir do vómito
Volto devagar a colocá-la na fome
Perco-a e recupero-a como o tempo da tristeza
Como um homem nadando para trás
E sou uma energia para ela
E ilumino-a
In “Poesia”
Assírio & Alvim
Daniel Faria
(1971-1999)
TENHO SAUDADES DO CALOR Ó MÃE
Tenho saudades do calor ó mãe que me penteias
Ó mãe que me cortas o cabelo — o meu cabelo
Adorna-te muito mais do que os anéis
Dá-me um pouco do teu corpo como herança
Uma porção do teu corpo glorioso — não o que já tenho —
O que em ti já contempla o que os santos vêem nos céus
Dá-me o pão do céu porque morro
Faminto, morro à míngua do alto
Tenho saudades dos caminhos quando me deixas
Em casa. Padeço tanto
Penso tanto
Canto tão alto quando calculo os corpos celestes
Ó infinita ó infinita mãe
In "Dos Líquidos"
Fundação Manuel Leão - Porto
Daniel Faria
(1971-1999)
PEDRA DE SÍSIFO
Agora medirei o tempo
Pela vara erguida ao meio-dia
Pela areia a descer o coração
E o sono
Pela cinza no cabelo de Jacob
Pelas agulhas no colo de Penélope
Agora lavarei a minha face
Sem perturbar os círculos da água Medirei o tempo pelo peso da pedra
De Sísifo, perto do cimo
E pelo musgo que dificulta
A firmeza dos seus pés
Partirei sozinho na viagem Sem nenhuma pedra ou senda repetida
E no tempo repetido acharei uma saída
Uma manhã depois de uma manhã
In “Poesia” – 2.ª edição
Edições Quasi – 2006
Daniel Faria
1971 – 1999
HÁ UMA MULHER A MORRER SENTADA
Há uma mulher a morrer sentada
Uma planta depois de muito tempo
Dorme sossegadamente
Como cisne que se prepara
Para cantar
Ela está sentada à janela. Sei que nunca
Mais se levantará para abri-la
Porque está sentada do lado de fora
E nenhum de nós pode trazê-la para dentro
Ela é tão bonita ao relento
Inesgotável
É tão leve como um cisne em pensamento
E está sobre as águas
É um nenúfar, é um fluir já anterior
Ao tempo
Sei que não posso chamá-la das margens
In “Dos Líquidos”
Fundação Manuel Leão – Porto – 2000
Daniel Faria
1971 – 1999
ESCREVO DO LADO MAIS INVISÍVEL DAS IMAGENS
Escrevo do lado mais invisível das imagens
Na parede de dentro da escrita e penso
Erguer à altura da visão o candeeiro
Branco das palavras com as mãos
Como a paveia atrás do segador
Vejo ao pés descalços dos que correm
E escrevo para os que morrem sem nunca terem provado o pão
Grito-lhes: imaginai o que nunca tivestes nas mãos
Correi. Como o segador seguindo o segador
Numa ceifa terrestre, tombando. Digo:
Imaginai
In “Dos Líquidos”
Fundação Manuel Leão – Porto – 2000
Daniel Faria
1971 – 1999
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