VAIDOSA
Dizem que tu és pura como um lírio
E mais fria e insensível que o granito,
E que eu que passo aí por favorito
Vivo louco de dor e de martírio.
Contam que tens um modo altivo e sério,
Que és muito desdenhosa e presumida,
E que o maior prazer da tua vida,
Seria acompanhar-me ao cemitério.
Chamam-te a bela imperatriz das fátuas,
A déspota, a fatal, o figurino,
E afirmam que és um molde alabastrino,
E não tens coração como as estátuas.
E narram o cruel martirológio
Dos que são teus, ó corpo sem defeito,
E julgam que é monótono o teu peito
Como o bater cadente dum relógio.
Porém eu sei que tu, que como um ópio
Me matas, me desvairas e adormeces,
És tão loira e doirada como as messes,
E possuis muito amor... muito amor próprio.
In “O Livro de Cesário Verde”
Cesário Verde
(1855-1886)
DESASTRE
Ele ia numa maca, em ânsias, contrafeito,
Soltando fundos ais e trémulos queixumes;
Caíra d’andaime e dera com o peito,
Pesada e secamente, em cima d’uns tapumes.
A brisa que balouça as árvores das praças,
Como uma mãe erguia ao leito os cortinados,
E dentro eu divisei o ungido das desgraças,
Trazendo em sangue negro os membros ensopados.
Um preto, que sustinha o peso d’um varal,
Chorava ao murmurar-lhe: «Homem não desfaleça!»
E um lenço esfarrapado em volta da cabeça
Talvez lhe aumentasse a febre cerebral.
Flanavam pelo Aterro os dândys e as cocottes,
Corriam char-à-bancs cheios de passageiros
E ouviam-se canções e estalos de chicotes,
Junto à maré, no Tejo, e as pragas dos cocheiros.
Viam-se os quarteirões da Baixa: um bom poeta,
A rir e a conversar numa cervejaria,
Gritava para alguns: «Que cena tão faceta!
Reparem! Que episódio!» Ele já não gemia.
Findara honradamente. As lutas, afinal,
Deixavam repousar essa criança escrava,
E a gente da província, atónita, exclamava:
«Que providências! Deus! Lá vai para o hospital!»
Por onde o morto passa há grupos, murmurinhos;
Mornas essências vêm d’uma perfumaria,
E cheira a peixe frito um armazém de vinhos,
Numa travessa escura em que não entra o dia!
Um fidalgote brada a duas prostitutas:
«Que espantos! Um rapaz servente de pedreiro!»
Bisonhos, devagar, passeiam uns recrutas
E conta-se o que foi na loja d’um barbeiro.
Era enjeitado, o pobre. E, para não morrer,
De bagas de suor tinha uma vida cheia;
Levava a um quarto andar cochos de cal e areia,
Não conhecera os pais, nem aprendera a ler.
Depois da sesta, um pouco estontecido e fraco,
Sentira a exalação da tarde abafadiça;
Quebravam-lhe o corpinho o fumo do tabaco
E o fato remendado e sujo da caliça.
Gastara o seu salário – oito vinténs ou menos –,
Ao longe o mar, que abismo! e o sol, que labareda!
«Os vultos, lá em baixo, oh! como são pequenos!»
E estremeceu, rolou nas atracções da queda.
O mísero a doença, as privações cruéis
Soubera repelir – ataques desumanos!
Chamavam-lhe garoto! E apenas com seis anos
Andara a apregoar diários de dez réis.
Anoitecia então. O féretro sinistro
Cruzou com um coupé seguido dum correio,
E um democrata disse: «Aonde irás, ministro!
Comprar um eleitor? Adormecer num seio?»
E eu tive uma suspeita. Aquele cavalheiro,
– Conservador, que esmaga o povo com impostos –,
Mandava arremessar – que gozo! estar solteiro! –
Os filhos naturais à roda dos expostos...
Mas não, não pode ser... Deite-se um grande véu...
De resto, a dignidade e a corrupção... que sonhos!
Todos os figurões cortejam-no risonhos
E um padre que ali vai tirou-lhe o solidéu.
E o desgraçado? Ah! Ah! Foi para a vala imensa,
Na tumba, e sem o adeus dos rudes camaradas:
Isto porque o patrão negou-lhes a licença,
O Inverno estava à porta e as obras atrasadas.
E antes, ao soletrar a narração do facto,
Vinda numa local hipócrita e ligeira,
Berrara ao empreiteiro, um tanto estupefacto:
«Morreu! Pois não caísse! Alguma bebedeira!»
Lisboa
In “Cânticos do Realismos e Outros Poemas - 32 Cartas”
Edição Teresa Sobral Cunha
Relógio de Água Editores
Cesário Verde
(1855-1886)
CADÊNCIAS TRISTES
A João de Deus
Ó bom João de Deus, ó lírico imortal,
Eu gosto de te ouvir falar timidamente
Num beijo, num olhar, num plácido ideal;
Eu gosto de te ver contemplativo e crente,
Ó pensador suave, ó lírico imortal!
E fico descansada, à noite, quando cismo
Que tentam proscrever a sensibilidade,
E querem denegrir o cândido lirismo;
Porque o teu rosto exprime uma serenidade,
Que vem tranquilizar-me, à noite, quando cismo!
O enleio, a simpatia e toda a comoção
Tu mostras no sorriso ascético e perfeito;
E tens o edificante e doce amor cristão,
Num trono de bondade, a iluminar-te o peito,
Que é toda a melodia e toda a comoção!
Poeta da mulher! Atende, escuta, pensa,
Já que és o nosso irmão, já que és o nosso mestre.
Que ela, ou doente sempre ou na convalescença,
É como a flor de estufa em solidão silvestre,
Ao tempo abandonada! Atende, escuta, pensa.
E, ó meigo visionário, ó meu devaneador,
O sentimentalismo há-de mudar de fases;
Mas só quando morrer a derradeira flor
É que não hão-de ler-se os versos que tu fazes,
Ó bom João de deus, ó meu devaneador!
In “Cânticos do Realismos e Outros Poemas - 32 Cartas”
Edição Teresa Sobral Cunha
Relógio de Água Editores
Cesário Verde
(1855-1886)
DESLUMBRAMENTOS
Milady, é perigoso contemplá-la,
Quando passa aromática e normal,
Com seu tipo tão nobre e tão de sala,
Com seus gestos de neve e de metal.
Sem que nisso a desgoste ou desenfade,
Quantas vezes, seguindo-lhes as passadas,
Eu vejo-a, com real solenidade,
Ir impondo toilettes complicadas!…
Em si tudo me atrai como um tesoiro:
O seu ar pensativo e senhoril,
A sua voz que tem um timbre de oiro
E o seu nevado e lúcido perfil!
Ah! Como me estonteia e me fascina…
E é, na graça distinta do seu porte,
Como a Moda supérflua e feminina,
E tão alta e serena como a Morte!…
Eu ontem encontrei-a, quando vinha,
Britânica, e fazendo-me assombrar;
Grande dama fatal, sempre sozinha,
E com firmeza e música no andar!
O seu olhar possui, num jogo ardente,
Um arcanjo e um demónio a iluminá-lo;
Como um florete, fere agudamente,
E afaga como o pêlo dum regalo!
Pois bem. Conserve o gelo por esposo,
E mostre, se eu beijar-lhe as brancas mãos,
O modo diplomático e orgulhoso
Que Ana de Áustria mostrava aos cortesãos.
E enfim prossiga altiva como a Fama,
Sem sorrisos, dramática, cortante;
Que eu procuro fundir na minha chama
Seu ermo coração, como a um brilhante.
Mas cuidado, Milady, não se afoite,
Que hão-de acabar os bárbaros reais;
E os povos humilhados, pela noite,
Para a vingança aguçam os punhais.
E um dia, ó flor do Luxo, nas estradas,
Sob o cetim do Azul e as andorinhas,
Eu hei-de ver errar, alucinadas,
E arrastando farrapos – as rainhas!
“O Livro de Cesário Verde”
In “Ler Por Gosto”
Areal Editores
Cesário Verde
1855 – 1886
HUMILHAÇÕES
Esta aborrece quem é pobre. Eu, quase Job,
Aceito os seus desdéns, seus ódios idolatro-os;
E espero-a nos salões dos principais teatros,
Todas as noites, ignorado e só.
Lá cansa-me o ranger da seda, a orquestra, o gás;
As damas, ao chegar, gemem nos espartilhos,
E enquanto vão passando as cortesãs e os brilhos,
Eu analiso as peças no cartaz.
Na representação dum drama de Feuillet,
Eu aguardava, junto à porta, na penumbra,
Quando a mulher nervosa e vã que me deslumbra
Saltou soberba o estribo do coupé.
Como ela marcha! Lembra um magnetizador.
Roçavam no veludo as guarnições das rendas;
E, muito embora tu, burguês, me não entendas,
Fiquei batendo os dentes de terror.
Sim! Porque não podia abandoná-la em paz!
Ó minha pobre bolsa, amortalhou-se a ideia
De vê-la aproximar, sentado na plateia,
De tê-la num binóculo mordaz!
Eu ocultava o fraque usado nos botões;
Cada contratador dizia em voz rouquenha:
— Quem compra algum bilhete ou vende alguma senha?
E ouviam-se cá fora as ovações.
Que desvanecimento! A pérola do Tom!
As outras ao pé dela imitam de bonecas;
Têm menos melodia as harpas e as rabecas,
Nos grandes espectáculos do Som.
Ao mesmo tempo, eu não deixava de a abranger;
Via-a subir, direita, a larga escadaria
E entrar no camarote. Antes estimaria
Que o chão se abrisse para me abater.
Saí; mas ao sair senti-me atropelar.
Era um municipal sobre um cavalo. A guarda
Espanca o povo. Irei-me; e eu, que detesto a farda,
Cresci com raiva contra o militar.
De súbito, fanhosa, infecta, rota, má,
Pôs-se na minha frente uma velhinha suja,
E disse-me, piscando os olhos de coruja:
— Meu bom senhor! Dá-me um cigarro? Dá?...
In “Cânticos do Realismo e Outros Poemas – 32 Cartas”
Edição: Teresa Sobral Cunha
Relógio D’Água Editores – Março 2006
Cesário Verde
1855 – 1886
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