Quarta-feira, 7 de Novembro de 2018

Recordando... Cesário Verde

VAIDOSA

 

Dizem que tu és pura como um lírio
E mais fria e insensível que o granito,
E que eu que passo aí por favorito
Vivo louco de dor e de martírio.

Contam que tens um modo altivo e sério,
Que és muito desdenhosa e presumida,
E que o maior prazer da tua vida,
Seria acompanhar-me ao cemitério.

Chamam-te a bela imperatriz das fátuas,
A déspota, a fatal, o figurino,
E afirmam que és um molde alabastrino,
E não tens coração como as estátuas.

E narram o cruel martirológio
Dos que são teus, ó corpo sem defeito,
E julgam que é monótono o teu peito
Como o bater cadente dum relógio.

Porém eu sei que tu, que como um ópio
Me matas, me desvairas e adormeces,
És tão loira e doirada como as messes,
E possuis muito amor... muito amor próprio.

 

In “O Livro de Cesário Verde”

 

Cesário Verde

(1855-1886)

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Terça-feira, 1 de Agosto de 2017

Recordando... Cesário Verde

DESASTRE 

 

Ele ia numa maca, em ânsias, contrafeito,

Soltando fundos ais e trémulos queixumes;

Caíra d’andaime e dera com o peito,

Pesada e secamente, em cima d’uns tapumes.

 

A brisa que balouça as árvores das praças,

Como uma mãe erguia ao leito os cortinados,

E dentro eu divisei o ungido das desgraças,

Trazendo em sangue negro os membros ensopados.

 

Um preto, que sustinha o peso d’um varal,

Chorava ao murmurar-lhe: «Homem não desfaleça!»

E um lenço esfarrapado em volta da cabeça

Talvez lhe aumentasse a febre cerebral.

 

Flanavam pelo Aterro os dândys e as cocottes,

Corriam char-à-bancs cheios de passageiros

E ouviam-se canções e estalos de chicotes,

Junto à maré, no Tejo, e as pragas dos cocheiros.

 

Viam-se os quarteirões da Baixa: um bom poeta,

A rir e a conversar numa cervejaria,

Gritava para alguns: «Que cena tão faceta!

Reparem! Que episódio!» Ele já não gemia.

 

Findara honradamente. As lutas, afinal,

Deixavam repousar essa criança escrava,

E a gente da província, atónita, exclamava:

«Que providências! Deus! Lá vai para o hospital!»

 

Por onde o morto passa há grupos, murmurinhos;

Mornas essências vêm d’uma perfumaria,

E cheira a peixe frito um armazém de vinhos,

Numa travessa escura em que não entra o dia!

 

Um fidalgote brada a duas prostitutas:

«Que espantos! Um rapaz servente de pedreiro!»

Bisonhos, devagar, passeiam uns recrutas

E conta-se o que foi na loja d’um barbeiro.

 

Era enjeitado, o pobre. E, para não morrer,

De bagas de suor tinha uma vida cheia;

Levava a um quarto andar cochos de cal e areia,

Não conhecera os pais, nem aprendera a ler.

 

Depois da sesta, um pouco estontecido e fraco,

Sentira a exalação da tarde abafadiça;

Quebravam-lhe o corpinho o fumo do tabaco

E o fato remendado e sujo da caliça.

 

Gastara o seu salário – oito vinténs ou menos –,

Ao longe o mar, que abismo! e o sol, que labareda!

«Os vultos, lá em baixo, oh! como são pequenos!»

E estremeceu, rolou nas atracções da queda.

 

O mísero a doença, as privações cruéis

Soubera repelir – ataques desumanos!

Chamavam-lhe garoto! E apenas com seis anos

Andara a apregoar diários de dez réis.

 

Anoitecia então. O féretro sinistro

Cruzou com um coupé seguido dum correio,

E um democrata disse: «Aonde irás, ministro!

Comprar um eleitor? Adormecer num seio?»

 

E eu tive uma suspeita. Aquele cavalheiro,

– Conservador, que esmaga o povo com impostos –,

Mandava arremessar – que gozo! estar solteiro! –

Os filhos naturais à roda dos expostos...

 

Mas não, não pode ser... Deite-se um grande véu...

De resto, a dignidade e a corrupção... que sonhos!

Todos os figurões cortejam-no risonhos

E um padre que ali vai tirou-lhe o solidéu.

 

E o desgraçado? Ah! Ah! Foi para a vala imensa,

Na tumba, e sem o adeus dos rudes camaradas:

Isto porque o patrão negou-lhes a licença,

O Inverno estava à porta e as obras atrasadas.

 

E antes, ao soletrar a narração do facto,

Vinda numa local hipócrita e ligeira,

Berrara ao empreiteiro, um tanto estupefacto:

«Morreu! Pois não caísse! Alguma bebedeira!»

 

Lisboa

 

In “Cânticos do Realismos e Outros Poemas - 32 Cartas”

Edição Teresa Sobral Cunha

Relógio de Água Editores

 

Cesário Verde

(1855-1886)

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Quarta-feira, 25 de Janeiro de 2017

Recordando... Cesário Verde

CADÊNCIAS TRISTES

 

                           A João de Deus

                       

Ó bom João de Deus, ó lírico imortal,

Eu gosto de te ouvir falar timidamente

Num beijo, num olhar, num plácido ideal;

Eu gosto de te ver contemplativo e crente,

Ó pensador suave, ó lírico imortal!

 

E fico descansada, à noite, quando cismo

Que tentam proscrever a sensibilidade,

E querem denegrir o cândido lirismo;

Porque o teu rosto exprime uma serenidade,

Que vem tranquilizar-me, à noite, quando cismo!

 

O enleio, a simpatia e toda a comoção

Tu mostras no sorriso ascético e perfeito;

E tens o edificante e doce amor cristão,

Num trono de bondade, a iluminar-te o peito,

Que é toda a melodia e toda a comoção!

 

Poeta da mulher! Atende, escuta, pensa,

Já que és o nosso irmão, já que és o nosso mestre.

Que ela, ou doente sempre ou na convalescença,

É como a flor de estufa em solidão silvestre,

Ao tempo abandonada! Atende, escuta, pensa.

 

E, ó meigo visionário, ó meu devaneador,

O sentimentalismo há-de mudar de fases;

Mas só quando morrer a derradeira flor

É que não hão-de ler-se os versos que tu fazes,

Ó bom João de deus, ó meu devaneador!

 

In “Cânticos do Realismos e Outros Poemas - 32 Cartas”

Edição Teresa Sobral Cunha

Relógio de Água Editores

 

Cesário Verde

(1855-1886)

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Quarta-feira, 13 de Fevereiro de 2013

Recordando... Cesário Verde

DESLUMBRAMENTOS

 

Milady, é perigoso contemplá-la,

Quando passa aromática e normal,

Com seu tipo tão nobre e tão de sala,

Com seus gestos de neve e de metal.

 

Sem que nisso a desgoste ou desenfade,

Quantas vezes, seguindo-lhes as passadas,

Eu vejo-a, com real solenidade,

Ir impondo toilettes complicadas!…

 

Em si tudo me atrai como um tesoiro:

O seu ar pensativo e senhoril,

A sua voz que tem um timbre de oiro

E o seu nevado e lúcido perfil!

 

Ah! Como me estonteia e me fascina…

E é, na graça distinta do seu porte,

Como a Moda supérflua e feminina,

E tão alta e serena como a Morte!…

 

Eu ontem encontrei-a, quando vinha,

Britânica, e fazendo-me assombrar;

Grande dama fatal, sempre sozinha,

E com firmeza e música no andar!

 

O seu olhar possui, num jogo ardente,

Um arcanjo e um demónio a iluminá-lo;

Como um florete, fere agudamente,

E afaga como o pêlo dum regalo!

 

Pois bem. Conserve o gelo por esposo,

E mostre, se eu beijar-lhe as brancas mãos,

O modo diplomático e orgulhoso

Que Ana de Áustria mostrava aos cortesãos.

 

E enfim prossiga altiva como a Fama,

Sem sorrisos, dramática, cortante;

Que eu procuro fundir na minha chama

Seu ermo coração, como a um brilhante.

 

Mas cuidado, Milady, não se afoite,

Que hão-de acabar os bárbaros reais;

E os povos humilhados, pela noite,

Para a vingança aguçam os punhais.

 

E um dia, ó flor do Luxo, nas estradas,

Sob o cetim do Azul e as andorinhas,

Eu hei-de ver errar, alucinadas,

E arrastando farrapos – as rainhas!

 

 

“O Livro de Cesário Verde”

 

In “Ler Por Gosto”

Areal Editores

 

Cesário Verde

1855 – 1886

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Quarta-feira, 25 de Maio de 2011

Recordando... Cesário Verde

HUMILHAÇÕES

 

Esta aborrece quem é pobre. Eu, quase Job,
Aceito os seus desdéns, seus ódios idolatro-os;
E espero-a nos salões dos principais teatros,
Todas as noites, ignorado e só.

Lá cansa-me o ranger da seda, a orquestra, o gás;
As damas, ao chegar, gemem nos espartilhos,
E enquanto vão passando as cortesãs e os brilhos,
Eu analiso as peças no cartaz.

Na representação dum drama de Feuillet,
Eu aguardava, junto à porta, na penumbra,
Quando a mulher nervosa e vã que me deslumbra
Saltou soberba o estribo do coupé.

Como ela marcha! Lembra um magnetizador.
Roçavam no veludo as guarnições das rendas;
E, muito embora tu, burguês, me não entendas,
Fiquei batendo os dentes de terror.

Sim! Porque não podia abandoná-la em paz!
Ó minha pobre bolsa, amortalhou-se a ideia
De vê-la aproximar, sentado na plateia,
De tê-la num binóculo mordaz!

Eu ocultava o fraque usado nos botões;
Cada contratador dizia em voz rouquenha:
— Quem compra algum bilhete ou vende alguma senha?
E ouviam-se cá fora as ovações.

Que desvanecimento! A pérola do Tom!
As outras ao pé dela imitam de bonecas;
Têm menos melodia as harpas e as rabecas,
Nos grandes espectáculos do Som.

Ao mesmo tempo, eu não deixava de a abranger;
Via-a subir, direita, a larga escadaria
E entrar no camarote. Antes estimaria
Que o chão se abrisse para me abater.

Saí; mas ao sair senti-me atropelar.
Era um municipal sobre um cavalo. A guarda
Espanca o povo. Irei-me; e eu, que detesto a farda,
Cresci com raiva contra o militar.

De súbito, fanhosa, infecta, rota, má,
Pôs-se na minha frente uma velhinha suja,
E disse-me, piscando os olhos de coruja:
— Meu bom senhor! Dá-me um cigarro? Dá?...

 

 

In “Cânticos do Realismo e Outros Poemas – 32 Cartas”

Edição: Teresa Sobral Cunha

Relógio D’Água Editores – Março 2006

 

Cesário Verde

1855 – 1886

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