WORDS, WORDS...
Ao Guedes Teixeira
Contam que em pequenino costumava,
Ao ver-me num cristal reproduzido,
Beijar a própria boca, em que julgava
Ver a boca de alguém desconhecido
Cresci. Amei-a. E tão alheio andava,
No sonho por seus olhos promovido,
Que em vez de cartas que ela me enviava,
Eu lia o que trazia no sentido...
Rodou o tempo. Estou doente e velho...
Agora, se me acerco dum espelho...
Oh meus cabelos, noto que alvejais...
E as cartas dela, se as releio agora,
Só vejo por aquelas linhas fora
Palavras e palavras... Nada mais!
In “Versos” [1898]
Ulmeiro - 1981
Augusto Gil
(1873-1929)
SEXTILHAS A UM MENINO JESUS DE ÉVORA
Num convento solitário
De Évora, cidade clara,
Claro celeiro de pão,
Existe uma imagem rara,
Obra dum imaginário
Dos tempos que já lá vão…
É um Menino Jesus,
De bochechinha brunida
Cor de maçã camoesa,
Mas no seu rosto transluz
Uma expressão dolorida
Que enche a gente de tristeza…
De tantíssimas imagens,
Nenhuma vi que mais prenda,
Que maior ternura expanda,
Com suas calças de renda,
Seu vestido de ramagens,
- E coroa posta à banda…
Gordo, nédio, bem trajado,
Deveria ser feliz,
Deveria estar sorrindo;
Mas o seu olhar magoado,
Tão magoado, tão lindo,
Que não o é, bem no diz…
Se não fosse por ser Deus
E o seu poder infinito
Ter sempre que demonstrar
Cá na terra e lá nos céus,
Estenderia o beicito
- E desatava a chorar!…
Corre o tempo descuidado,
Passa uma hora, outra hora,
Atrás desta outras se vão,
E, quem o vê, encantado,
Sem se poder ir embora
Numa perpétua atracção…
Eu entrei com o sol a pino.
Pouco depois da chegada
(Pouco a mim me pareceu)
Deixei de ver o Menino…
Não era a vista cansada,
- Foi a noite que desceu…
Mesmo assim lá ficaria,
Absorto em muda prece
De quem mal sabe rezar,
Se o sacristão não viesse,
Com rodas de Senhoria,
Dizer-me que ia fechar…
Pudesse tê-lo trazido
E não fosse eu rico, apenas,
De fantasias, de esp'ranças,
Punha-o num nicho florido
Por sobre as camas pequenas
Dum hospital de crianças…
Dum hospital modelar
Sustentado por meus bens,
Entre olaias e roseiras,
Cheio de sol, cheio de ar,
E em que as boas enfermeiras
- Seriam as próprias mães…
A mais ampla enfermaria
Desse escolhido local
De bondade e sofrimento
- Era o fundo natural
Da funda melancolia
Do Menino do convento…
In “Luar de Janeiro”
Colecção – Autores Portugueses de Ontem – 1989
Estante Editora
Augusto Gil
1873 – 1929
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