AS PESSOAS INSTANTÂNEAS
Quando a morte cai sobre as pessoas
é porque tem as asas cansadas
de dar voltas ao mundo.
Escolhe, hesitante, um dos seus cantores.
Escolhe quem, matinalmente, se cumprimenta.
A morte um dia esquece e desce
sobre os mesmos reverentes.
Esqueceu tudo o que dissera.
Ou fingiu que esqueceu tudo.
Alguém parou misteriosamente de falar.
E o silêncio quer dizer: “Acabou tudo.”
Quer dizer: “venham comigo até aquelas grutas!”
Agora finjam que estão velhos.
E que ninguém está nada triste.
Olhem para as vossas pernas,
não há pernas!
Nem mãos,
excepto para tocar em coisas indescritíveis.
As crianças que morriam.
Vou viver para a neve com os meus filhos
mergulhar nos rios soturnos e profundos
em segundos.
Por entre as algas e os peixes que prendiam
os braços das crianças que agarravam
os polvos misteriosos que ensinavam
a nadar os que mereciam.
Se a mim viesse algum dos mortos que ensinasse
a morrer a quem vivesse
a nadar a quem andasse
a dormir a quem falasse
Sem parar.
Imitaria a vida que vivesse
esse monstro que ensinasse
Que morresse.
Que matasse.
Sem matar.
In “A minha cor favorita é a neve”
Editora Escritor - 2000
António Ladeira
(N.1966)
OS AMIGOS
Quando se abrem os portões das grandes casas
e os amigos se entreolham antes de recolherem
aos respectivos túmulos
todos tão estranhamente corteses e finais
tão esquecidos de tudo o que um dia prometeram
tão emudecidos e gratos
tão suspensos de uma sede que os tornou irredutíveis
com os seus cabelos verdes e revoltos
a roupa que o corpo ainda segrega
por ter frio
por ser sempre de noite.
Amigos tímidos como certos dias de chuva
com os seus passos de borracha
os seus velhos sobretudos
as suas vozes em coro.
Os rostos inclinados sobre a cidade limpa
onde os vejo escrever, aplicadamente,
sobre o tampo metálico de uma mesa de café
a uma janela que dá sobre o Tejo
a ver passar o mundo.
Amigos pensativos como nuvens baixas,
como janelas abertas sobre praias escuras,
heras, campos de heras,
campos de ossos.
In “Eu vi jardins no inferno”
Palimpsesto Editora - 2010
António Ladeira
(N. 1966)
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