RESIGNO-ME À FUNÇÃO
Isto de fazer poesia
não tem não mais que fazê-la.
Põe-se o papel, pega-se no lápis
e à moela da inspiração
falemos assim, digamos assim
não se diz não.
Começa-se não mal
que se comece bem
depois de tal
vem que as imagens
ou as comparações
escrevem e metem-se no meio
do que tu supões.
Depois dentre nós dois
ou o Céu ou o Inferno
ou Deus ou o Diabo
a bela ou o quadritérnio
inspiro-me, inspiras-te,
escrevo, começo e acabo.
Não abro o coração
em dois
que não vem depois
mais sangue fluido
a falar.
Abra-se antes na função
poética
coisas como o mar
o luar, o acabar das horas
e dos dias, na poesia romântica,
e na quântica outras
coisas, outras noções,
as quantas são que não
na romântica
aqui nesta já as leis
do coração, a função
entre dois corações
mas fisiologicamente
e na romântica
apaixonadamente mais quente.
Resigno-me à função
de fazer poesia.
Esfria-me é
o condão muitas vezes
mas a teses como
esta ou uma tese
qualquer
quero fazer eu
um poema também.
Resigno-me à função.
Submeto-me à função.
Subjugo-me à função.
E não vou mais longe.
Escrevo. Poesia.
O hábito faz o monge
e eu um dia vou longe
se escrever muito em poesia.
Doutra maneira dizia que
vale mais fazer a poesia
que dizê-la
que ela de guia tem
e serve-se de bela.
In “O Ar da Manhã”
Assírio & Alvim
António Gancho
(1940-2006)
ARTÉRIA, TU TENS RAZÃO
A única coisa que eu aprendi meu Deus
a sofrer a desilusão duma passagem de rua
ficar com o lado esquerdo a ajudar a falar
mas a única coisa que eu aprendi
Que um bocado de vidro inundasse de luz uma artéria
eu era um bocado de vidro que não inundasse de luz
artéria nenhuma
era uma desilusão a olhar para mim
e dizer movimento de rua
é assim movimento de rua
aí está nós cá estamos nós somos tal e qual
uma desilusão em passagem.
Tinha era ainda mais que tudo isso
um inchaço dum vidro em bocado
espetado em cima de pedra.
Havia um estendal de desilusão a devorar-me
todo com os olhos
eu era uma continuação do meu ser.
Onde um simulacro estava a vantagem
de uma desilusão.
Eu não
eu cá.
Que um cá estamos considerasse ou não
eu não tinha nada com isso
Eu fum, eu...
Ah,
Havia é que era eu cá estamos nada disso
eu cá não eu nada eu não tinha eu não tenho
tu quê
nós consideramos.
Onde punha fum
tudo por dentro era duma urania
tudo por dentro era duma constipação palpável
pelo sentido da pedra e do bocado de vidro.
Não eu cá não vou.
Quem olha descontenta.
In “O Ar da Manhã”
Assírio & Alvim
António Gancho
(1940-2006)
LITERATURA
De literalmente aturar
atura a minha literatura
estar entre toda a Literatura que há até hoje e houve
e literatura nenhuma.
Se é surrealista ou não em suma
não sei responder.
Se ela é existencialista
por exemplo que sei eu
entre os franceses por exemplo
dos franceses
André Frénaud
e os esquizofrénicos de Paris
do frio
o frio
não me deixa se calhar ser.
Que eu tanto canto
a existência do frio como do calor
a existência do Verão e do Sol
como da chuva e do Inverno
eu canto qualquer coisa
eterno provedor da minha república
só interior de cantar.
Senão, ó bela, é instaurarem-me
um processo que não dá para o petróleo
cole-o o tempo ao ramo
o amo ao cavalo
que exprimo e falo de mim primeiro
primeiro de mim
depois e só depois dos outros sim
e entre os dois enfim
ganhar qualquer coisinha
para a espinha que dói muito a escrever
senão é ver.
Beber umas coisas
e se ela noutra arte pousar
e cá isso de surrealista ou existencialista
não o sei ainda que a mim não mo disseram.
Só considerar isso das duas coisas.
À parte isso falo de existir
ganhar uns carcanhóis
com a arte de escribir
comer uns caracóis com o dinheiro arranjado
fumar uns cigarróis
beber cá umas coisas
e de artes só há duas.
Sub-reptilmente
ou existencialmente ainda continuar.
Existentivamente.
Comer.
Beber.
Escrever.
Mais umas mulheres nuas.
In “O Ar da Manhã”
Assírio & Alvim
António Gancho
(1940-2006)
PRISÃO
Tu tinhas uma nascença que era uma prisão
uma certeza de estar concreto e unido
com a matéria de pedra
Que era uma tua sedimentação de vida
uma tua construção de movimentos a sair das grades
Era rico em Sol o teu peito de grades
concreto e unido sedimentavas dias de espera
duma letra que te abrisse os instintos para
falares de nada.
Era uma certeza de tu estares unido como uma raiz de mesa própria
uma certeza de estares virado para um
nascente de inconcretidade material
tinhas uma mão de peça de artilharia
de disparares para fora o conteúdo dos dias com
raiz de mesa própria
Eras um sol a nascer-te no sítio da grade
onde se punham ramos de quinta-feira de campo.
Tinhas uma natureza de estares sentado
Sobre uma cadeira que era a tua
esperança de estares unido com a nascença do movimento.
Tinhas um cantarem-te os cabelos no dia de dentro
um ser-te uma mágica a fusão de
olhar com a dimensão de esperança fora.
Eras-te igual à matéria da tua animação de selva
íntima
igual ao cantar-te serôdio o tempo de pendular
na cabeça
Conhecias uma esperança de cortares os cabelos com uma
navalha de vento
mas era tua inspiração de um modo interior de vida.
Criavas um espaço aberto na clareira duma grade
que era um espaço celeste a cobrir de grego o cimento
Tu tinhas uma invenção de disparares saúde de dias
por fora da mão
Tu tinhas uma sensação absoluta de estares aberto com o espaço
duma grade
tinhas um ser-te grave o olhar para fora do dia
inaugurado de verde
Que se te abrisse a letra
era desejo de teres fonemas no nada de uma mão aberta
sem um rogar de branco.
O sol aberto em sentido de alusão a uma palavra de ti
era nada de o poente estar no sentido inverso.
In “O Ar da Manhã”
Assírio & Alvim
António Gancho
(1940-2006)
ABERTURA
Eu abria o rádio
eu abria o aparelho
era uma flor branca que eu abria
de sopro
eu soprava e eu abria a flor
A flor tocava música com as várias mãos
das pétalas
A flor tocava uma simbolização dum tempo
caído podre de espera de cor branca
O tempo espera-se em pintar-se
de branco
para cegar uma cor
mas a minha flor abria-se de
pétalas
e as várias mãos escreviam um
piano por cima de teclas grãos vários
seguidos uns aos outros.
Era assim uma harmonia
entre flor
tempo a querer-se de cor branca em cegar
era assim umas teclas cantarem filhos de grãos
por dentro dos grãos mesmos
unidos que eram em dimensão de lado
era assim um cantar-me o tempo todo
não era assim um cantar-me o tempo todo
era assim um pairar-me
o tempo todo em Nijinsky
o tempo em um fazer-me ballet pelo quarto inteiro
quando eu tinha aberta a cabeça que imagino
da música
Abria a pétala favorita do harém
onde no centro um sultão da flor
no centro que era o amarelo da flor
abria a pétala favorita da flor
e então
e era então que me soava dentro da manhã
do quarto
uma música desfibrada de tempo serôdio
como se tudo me fosse em longe
como se a música levasse longe
o céu.
In “O Ar da Manhã”
Assírio & Alvim
António Gancho
(1940-2006)
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