OLHA-ME AGORA…
Olha-me agora, que me tens vencido
e sou nas tuas mãos pobre veludo,
de pele morta e rota mal vestido
e, de sábio que sou, já tartamudo.
Fala-me agora, que não tenho boca.
e sou na tua pele mero ouvido,
diz-me palavras soltas sem sentido
ou pede-me por graça o consentido.
Olha-me só para que veja como
tão claro e fundo olhar me tem mantido
na solidão sem nome deste pranto;
ou escreve em mim com hálito de lume
para que seja eu a enrodilhada chama
que se esquece de si e sonha o fumo.
In “Duende”
Assírio & Alvim
António Franco Alexandre
(N.1944)
NA LISTA DOS TEUS FINS VENHO NO FIM
Na lista dos teus fins venho no fim
de uma página nunca publicada,
e é justo que assim seja. Embora saiba
mexer palavras, e doer de frente,
e tenha esse talento conhecido
de acordar de manhã, dormir à noite,
e ser, o dia todo, como gente,
nunca curei, como previa, a lepra,
nem decifrei o delicado enigma
da letra morta que nos antecede.
Por muito te querer, talvez pudesses
dar-me um lugar qualquer mais adiante,
despir-te de pudor por um instante
e deixá-lo cobrir-me como um manto.
In “Aracne”
Assírio & Alvim
António Franco Alexandre
(N.1944)
A RECTIDÃO DA ÁGUA; O CRESCIMENTO
a rectidão da água; o crescimento
das avenidas, ao anoitecer, sob a nua
vibração dos faróis;
o laço, mesmo, das portas só
entreabertas, onde a luz
silenciosa se demora;
são memórias, decerto, de um anterior
esquecimento, uma inocente
fadiga das coisas,
como os corpos calados, abandonados
na véspera da guerra, o teu
jeito para
o desalinho branco das palavras,
altas as
asas de nuvens no clarão do céu
em vão rigor abrindo
o destinado enigma: assim
desconhecer-te cada dia mais
ausente de recados e colheitas,
em assustado bosque, em sombra
clareira,
ao risco dos rios frívolos descendo
seixos polidos, desinscritos,
imóveis movendo
a luz do dia;
a margem recortada, aonde vivem
ausentes e seguros, os luminosos
animais do inverno;
assim são na verdade os muros claros;
assim respira o tempo, a terra intensa.
In “A Pequena Face”
Assírio & Alvim
António Franco Alexandre
N. 1944
SYRINX, FICÇÃO PASTORAL (I)
Vou pôr um anúncio obsceno no diário
pedindo carne fresca pouco atlética
e nobres sentimentos de paixão.
Desejo um ser, como dizer, humano
Que por acaso me descubra a boca
e tenha como eu fendidos cascos
bífida língua azul e insolentes
maneiras de cantar dentro de água.
Vou querer que me ame e abandone
com igual e serena concisão
e faça do encontro relatório
ou poema que conste do sumário
nas escolas ali além das pontes
E espero ao telefone que me digam
se sou feliz, real, ou simplesmente
uma espuma de cinza em muitas mãos.
In “Quatro Caprichos”
Assírio & Alvim – 1999
António Franco Alexandre
N.1944
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