Sábado, 1 de Julho de 2023

Recordando... António Botto

PODES LEVAR AS ROSAS QUE TROUXESTE

 

Podes levar as rosas que trouxeste.

 

Não as quero,

Nem me digas

Que has de ser perpetuamente

O motivo mais ardente

- O maior motivo

Das minhas cantigas.

 

Enganámo-nos, meu bem!

 

Agora que já conheço

Todo o sabor dos teus beijos,

Quero-te menos, e sinto

A febre de outros desejos

Que não podes entender...

 

Mas hei de lembrar-te, juro!

E tanto..., quanto puder.

 

In “Revista “Contemporanea”

Ano I – Volume I – Nº.1 Ano 1922

Pág. 37

 

Grafia original

 

António Botto

(1897-1959)

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Sábado, 1 de Outubro de 2022

Recordando... António Botto

PALAVRAS DE UM AVESTRUZ TODO GRIS

 

Arrancam-me as penas

E eu sofro sem dizer nada:

- Sou ave

Bem educada.

 

E, se quisesse,

Podia

Morder-lhes as mãos morenas,

A esses

Que sem piedade

Me roubam as penas que me cobrem;

 

E, no entanto,

Sem o mais breve gemido,

O meu corpo

Vai ficando

Desguarnecido ...

 

E elas,

Aquelas

Que se enfeitam, doidamente,

Com estas penas formosas

- Que são minhas!

Passam por mim, desdenhosas,

Em gargalhadas mesquinhas.

 

Sim; eu sofro sem dizer nada:

- Sou ave

Bem educada.

Mesmo que fosse pequena

E eu te visse pobre ou nua

- Ninguém ama a sua Pátria por ser grande,

Mas sim por ser sua!

 

In “Canções e Outros Poemas”

Quasi Edições

 

António Botto

(1897-1959)

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Sexta-feira, 1 de Julho de 2022

Recordando... António Botto

A BELEZA

 

A beleza

Sempre foi

Um motivo secundário

No corpo que nós amamos;

A beleza não existe,

E quando existe não dura.

A beleza

Não é mais do que o desejo

Fremente

Que nos sacode...

- O resto, é literatura.

 

In “As Canções de António Botto”

Editorial Presença

 

António Botto

(1897-1959)

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Segunda-feira, 19 de Abril de 2021

Recordando... António Botto

NÃO ME CHAMEM PELO NOME

 

Não me chamem pelo nome

Que me deram ao nascer;

Sou como a folha caída

Que não chegou a viver.

 

Se eu sem riquezas nasci,

Cheguei a sonhar com elas

Na esperança de ser alguém;

Mas bem depressa deixei

A tortura de quem quer

Conquistar o que não tem.

Os nervos mortos, na terra

dos meus planos iludidos,

Mentiram à própria fome!

Por isso nesta indiferença

Peço apenas: - e é tão pouco!,

Não me chamem pelo nome.

 

Sou como a folha caída

Pisada por quem passeia

Alheio à luz e à beleza;

E de todas as venturas,

Só me encontro nos silêncios

Que tem a minha tristeza.

Perdi-me no sofrimento

Que nos dão as aparências

Que julgamos entender...

Da vida não quero nada;

E não me falem no nome

Que me deram ao nascer.

 

Sou como a flor esquecida

Nos canteiros da ilusão

De um jardineiro traidor,

Sou como fonte discreta

Entre folhagens cantando

Tristes cantigas de amor;

Ao fim de tanta vileza

Já não me posso iludir

Com as promessas da vida!

Tudo em mim sabe a derrota,

E até da morte duvido

- Sou como a folha caída.

 

Sou como tudo que passa

No giro do pensamento

De uma criança a brincar;

E os meus mais débeis desejos

Morrem aos ais na lembrança

De quem se esqueceu de amar;

Nada no mundo me prende;

Nem a saudade de um beijo

Num momento de prazer!,

- Pobre corpo sem destino,

Renúncia firme de artista

Que não chegou a viver.

 

In “As Canções de António Botto”

Edições Ática

 

António Botto

(1897-1959)

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Sábado, 13 de Julho de 2019

Recordando... António Botto

É DIFÍCIL NA VIDA...

 

É difícil na vida achar alguém

Que seja na verdade um grande amigo;

E se assim penso - e com tristeza o digo,

É porque o sei, talvez, como ninguém.

 

Se a amizade é um bem - e se esse bem

Traz o conforto de um divino abrigo,

Por mim, direi que nunca mais consigo

Iludir-me nas graças que ele tem.

 

Afectos, sacrifícios, lealdade!

Tudo se apaga ou fica na memória

Se a ilusão dá lugar á realidade.

 

E ai daqueles que pensam na excepção;

Acabam por ficar dentro da história

De que a vida é um sonho e uma traição.

 

In “Líricas Portuguesas” - I Volume

Selecção, Prefácios e apresentação de Jorge de Sena

Edições 70 -1984

 

António Botto

(1897-1959)

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Sexta-feira, 25 de Novembro de 2016

Recordando... António Botto

PASSEI O DIA OUVINDO O QUE O MAR DIZIA

 

Eu ontem passei o dia

Ouvindo o que o mar dizia.

Chorámos, rimos, cantámos.

Falou-me do seu destino,

Do seu fado...

 

Depois, para se alegrar,

Ergueu-se, e bailando, e rindo,

Pôs-se a cantar

Um canto molhado e lindo.

 

O seu hálito perfuma,

E o seu perfume faz mal!

Deserto de águas sem fim.

Ó sepultura da minha raça

Quando me guardas a mim?...

 

Ele afastou-se calado;

Eu afastei-me mais triste,

Mais doente, mais cansado...

Ao longe o Sol na agonia

De roxo as águas tingia.

 

«Voz do mar, misteriosa;

Voz do amor e da verdade!

- Ó voz moribunda e doce

Da minha grande Saudade!

Voz amarga de quem fica,

Trémula voz de quem parte...»

.........................................

 

E os poetas a cantar

São ecos da voz do mar!

 

In “As Canções de António Botto”

Ed. Presença – 1980

 

António Botto

(1897-1959)

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