Sexta-feira, 7 de Julho de 2023

Recordando... Almeida Garrett

SEUS OLHOS

 

Seus olhos - se eu sei pintar
O que os meus olhos cegou
Não tinham luz de brilhar.
Era chama de queimar;
E o fogo que a ateou
Vivaz, eterno, divino,
Como facho do Destino.

Divino, eterno! - e suave
Ao mesmo tempo: mas grave
E de tão fatal poder,
Que, num só momento que a vi,
Queimar toda alma senti...
Nem ficou mais de meu ser,
Senão a cinza em que ardi.

 

In “Folhas Caídas – Livro Segundo”

 

Almeida Garrett

(1799-1854)

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Terça-feira, 31 de Janeiro de 2023

Recordando... Almeida Garrett

A BELA INFANTA

 

Estava a bela infanta

No seu jardim assentada,

Com o pente de oiro fino

Seus cabelos penteava

Deitou os olhos ao mar

Viu vir uma nobre armada;

Capitão que nela vinha,

Muito bem que a governava.

- "Dize-me, ó capitão

Dessa tua nobre armada,

Se encontraste meu marido

Na terra que Deus pisava."

- "Anda tanto cavaleiro

Naquela terra sagrada...

Dize-me tu, ó senhora

As senhas que ele levava."

- "Levava cavalo branco,

Selim de prata doirada;

Na ponta da sua lança

A cruz de Cristo levava."

- "Pelos sinais que me deste

Lá o vi numa estacada

Morrer morte de valente:

Eu sua morte vingava."

- "Ai triste de mim viúva,

Ai triste de mim coitada!

De três filhinhas que tenho,

Sem nenhuma ser casada!..."

- "Que darias tu, senhora,

A quem no trouxera aqui?"

- "Dera-lhe oiro e prata fina

Quanta riqueza há por í."

- "Não quero oiro nem prata,

Não nos quero para mi':

Que darias mais, senhora,

A quem no trouxera aqui?"

- "De três moinhos que tenho,

Todos os três tos dera a ti;

Um mói o cravo e a canela,

Outro mói do gerzeli:

Rica farinha que fazem!

Tomara-os el-rei para si."

- "Os teus moinhos não quero,

Não os quero para mi:

Que darias mais, senhora,

A quem to trouxera aqui?"

- "As telhas do meu telhado,

Que são de oiro e marfim."

- "As telhas do teu telhado

Não nas quero para mi":

Que darias mais, senhora,

A quem no trouxera aqui?"

- "De três filhas que eu tenho

Todas três te dera a ti:

Uma para te calçar,

Outra para te vestir

A mais formosa de todas

Para contigo dormir."

- "As tuas filhas, infanta,

Não são damas para mi':

Dá-me outra coisa, senhora,

Se queres que o traga aqui."

- "Não tenho mais que te dar.

Nem tu mais que me pedir."

- "Tudo não, senhora minha.

Que inda não te deste a ti."

- "Cavaleiro que tal pede,

Que tão vilão é de si,

Por meus vilãos arrastado

O farei andar por aí

Ao rabo do meu cavalo

À volta do meu jardim.

Vassalos, os meus vassalos,

Acudi-me agora aqui!"

- "Este anel de sete pedras

Que eu contigo reparti...

Que é dela a outra metade?

Pois a minha, vê-la aí!"

- "Tantos anos que chorei,

Tantos sustos que tremi!...

Deus te perdoe, marido,

Que me ias matando aqui."

 

In “Romanceiro e Cancioneiro Geral”

 

Almeida Garrett

(1799-1854)

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Segunda-feira, 31 de Janeiro de 2022

Recordando... Almeida Garrett

DESTINO

 

Quem disse à estrela o caminho
Que ela há-de seguir no céu?
A fabricar o seu ninho
Como é que a ave aprendeu?
Quem diz à planta «Floresce!»
E ao mudo verme que tece
Sua mortalha de seda
Os fios quem lhos enreda?

Ensinou alguém à abelha
Que no prado anda a zumbir
Se à flor branca ou à vermelha
O seu mel há-de ir pedir?

Que eras tu meu ser, querida,
Teus olhos a minha vida,
Teu amor todo o meu bem...
Ai! não mo disse ninguém.
Como a abelha corre ao prado,
Como no céu gira a estrela,
Como a todo o ente o seu fado
Por instinto se revela,
Eu no teu seio divino
Vim cumprir o meu destino...
Vim, que em ti só sei viver,
Só por ti posso morrer.

 

In “Folhas Caídas – Livro Primeiro”

 

Almeida Garrett

(1799-1854)

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Terça-feira, 19 de Fevereiro de 2019

Recordando... Almeida Garrett

GOZO E DOR

 

Se estou contente, querida,
Com esta imensa ternura
De que me enche o teu amor?
Não. Ai não; falta-me a vida;
Sucumbe-me a alma à ventura:
O excesso de gozo é dor.

Dói-me alma, sim; e a tristeza
Vaga, inerte e sem motivo,
No coração me poisou.
Absorto em tua beleza,
Não sei se morro ou se vivo,
Porque a vida me parou.

É que não há ser bastante
Para este gozar sem fim
Que me inunda o coração.
Tremo dele, e delirante
Sinto que se exaure em mim
Ou a vida ou a razão.

 

In “Folhas Caídas – Livro Primeiro”

 

Almeida Garrett

(1799-1854)

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Sábado, 13 de Outubro de 2018

Recordndo... Almeida Garrett

VIBORA

 

Como a víbora gerado,
No coração se formou
Este amor amaldiçoado
Que à nascença o espedaçou.

Para ele nascer morri;
E em meu cadáver nutrido,
Foi a vida que eu perdi
A vida que tem vivido.

 

In “Folhas Caídas – Livro Primeiro”

 

Almeida Garrett

(1799-1854)

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Sábado, 19 de Dezembro de 2015

Recordando... Almeida Garrett

O MAR

 

III

 

Vae-se acclarando agora o firmamento,

E azulando-se o mar co’a luz nascente

Do primeiro, tenuissimo crepusculo.

Eil-a que assoma, despontando apenas

C’os roseos dedos, a formosa aurora

Vem brandamente a desparzir no polo

As roxas, lindas flores, rociadas

Do matutino, bemfazejo orvalho,

Talvez por mãos dos zephyros colhidas

Nos jardins Ulysseos, nas brandas veigas

Ao remanso do placido Mondego...

Talvez ontem ainda a minha amada

Lhe respirasse o lisongeiro aroma...

Oh! recolhei-as, amorosas filhas

Do placido Nereu, ide nos collos

Dos Tritões namorados, ide ao Tejo

E ao manso rio que ingrossaram prantos

Da malfadada Ignez, ide, levae-lh’as

Aos do meu coração, o amigo, a amante:

Dizei-lhes que eu, eu sou que vos invio.

Que depóz vós o coração me foge,

E que so vivo nas memorias delles.

Ide ligeiras, sim, correi, à nynphas...

Mas oh! do patrio meu Douro sombrio

Ai! não, não vades demandar as praias...

Amargosa e cruel me veda a sorte

Recordal-o sem dor... Ferreas angústias

Lá misero soffri... lá n’este peito

Verteu perversa mão do deus dos males

Quanto fel espremeu do peito ás furias,

Quanto veneno lhe escumou dos labios.

A ingrata... Ah! nunca mais me lembre o Douro:

Suas riquezas para si que as guarde.

Suas aguas turvas impetuoso as role

Por entre as calvas penedidas brutas

Que a lobrega torrente lhe comprimem:

Va, que a mim saudades não m’as deixa:

So tormentos me deu, não posso amal-o…

 

In “Flores sem Fructo” - Livro Primeiro

Imprensa Nacional – 1845

 

Almeida Garrett

(1799 - 1854)

 

Mantem a grafia original

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Terça-feira, 7 de Fevereiro de 2012

Recordando... Almeida Garrett

NÃO TE AMO

 

Não te amo, quero-te: o amar vem d’alma.
         E eu n´alma – tenho calma,
         A calma do jazigo.
         Ai!, não te amo, não.

 

Não te amo, quero-te: o amor é vida.
         E a vida – nem sentida
         A trago eu já comigo.
         Ai!, não te amo, não!

 

Ai! não te amo, não; e só te quero
         De um querer bruto e fero
         Que o sangue me devora,
         Não chega ao coração.

 

Não te amo. És bela; e eu não te amo, ó bela.
         Quem ama a aziaga estrela
         Que lhe luz na má hora
         Da sua perdição?

 

E quero-te, e não te amo, que é forçado.
         De mau feitiço azado
         Este indigno furor.
         Mas oh! Não te amo, não.

 

E infame sou, porque te quero; e tanto
         Que de mim tenho espanto,
         De ti medo e terror…
         Mas amar!… não te amo, não.

 

 

 In “Folhas Caídas”

 

Almeida Garrett

1799 - 1854                                       

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