A HISTÓRIA DA MORAL
Você tem-me cavalgado,
seu safado!
Você tem-me cavalgado,
mas nem por isso me pôs
a pensar como você.
Que uma coisa pensa o cavalo;
outra quem está a montá-lo.
In "De ombro na ombreira"
Publicações Dom Quixote
Alexandre O'Neill
(1924-1986)
QUE VERGONHA, RAPAZES
Que vergonha, rapazes! Nós práqui
caídos na cerveja ou no uísque,
a enrolar a conversa no "diz que"
e a desnalgar a fêmea ("Vist'? Viii!")
Que miséria, meus filhos! Tão sem geito
é esta videirunha à portuguesa,
que às vezes me soergo no meu leito
e vejo entrar quarta invasão francesa.
Desejo recalcado, com certeza...
mas logo desço à rua, encontro o Roque
("O Roque abre-lhe a porta, nunca toque!")
e desabafo: - Ó Roque, com franqueza:
você nunca quis ver outros países?
- Bem queria, sr. O'Neill! E... as varizes?
In "De ombro na ombreira"
Alexandre O'Neill
(1924-1986)
A BILHA
1
Bilha: forma que se casa
Com o meu coração,
A dar-me, simples, a asa,
Como um menino a mão!
Bilha que serve, na mesa,
e espera, sobre a tolha,
Que a gente sinta a beleza
de quem trabalha...
Bilha: donzela que dançou,
Dançou tanto de roda,
E na «pose» que me agrada,
De repente ficou!
2
Bilha só para ver...
Parece uma rapariga
Que ninguém quer,
A mostrar a barriga!
Bilha: mais bela por servir,
Por nem sempre conter,
por se poder
Partir...
Bilha que trabalha, que serve,
Que se enche e esvazia
Com a água e com a sede
De cada dia!
3
Serás, bilha, só a terna
Parede feminina
Entre o espaço que te cerca
E o espaço que te anima?
Mas da própria condição
de só deveres conter
Água para beber
Se forma o teu coração!
In “No Reino da Dinamarca”
Editores Guimarães
Alexandre O'Neill
(1924-1986)
MINUCIOSA FORMIGA
Minuciosa formiga
Não tem que se lhe diga:
Leva a sua palhinha
Asinha, asinha.
Assim devera ser eu
E não esta cigarra
Que se põe a cantar
E me deita a perder.
Assim devera eu ser:
De patinhas no chão,
Formiguinha ao trabalho
E ao tostão.
Assim devera eu ser
Se não fora não querer.
In “Feira Cabisbaixa”
Editora Ulisseia
Alexandre O'Neill
1924 – 1986
HÁ PALAVRAS QUE NOS BEIJAM
Há palavras que nos beijam
Como se tivessem boca.
Palavras de amor, de esperança,
De imenso amor, de esperança louca.
Palavras nuas que beijas
Quando a noite perde o rosto;
Palavras que se recusam
Aos muros do teu desgosto.
De repente coloridas
Entre palavras sem cor,
Esperadas inesperadas
Como a poesia ou o amor.
(O nome de quem se ama
Letra a letra revelado
No mármore distraído
No papel abandonado)
Palavras que nos transportam
Aonde a noite é mais forte,
Ao silêncio dos amantes
Abraçados contra a morte.
In “No Reino da Dinamarca”
Editora Relógio D'Água
Alexandre O'Neill
1924 – 1986
CANÇÃO
Que saia a última estrela
da avareza da noite
e a esperança venha arder
venha arder em nosso peito
E saiam também os rios
da paciência da terra
É no mar que a aventura
tem as margens que merece
E saiam todos os sóis
que apodreceram no céu
dos que não quiseram ver
- mas que saiam de joelhos
E das mãos que saiam gestos
de pura transformação
Entre o real e o sonho
seremos nós a vertigem
In “Poesias Completas”
Assírio & Alvim
Alexandre O'Neill
1924 – 1986
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