O MUNDO
O mundo, tal como o entendo,
Não vai além daquilo que o cego
De cor e sombra pode encontrar
Na escuridão que é a sua sina;
Este mundo, imenso e luzente,
O qual nós viemos herdar
Com um orgulho inconsciente,
Vale tanto quanto as nossas rimas
E haveres, sua lama dourada —
Nada, é o mais que dele vou falar
E aqui, no leito do nada,
Para o outro lado vou-me voltar.
1907
In “Poesia”
Edição e tradução de Luísa Freire
Assírio & Alvim – 1999
Alexander Search
Heterónimo de Fernando Pessoa (1888-1935)
EPITÁFIO
Dos poetas do mundo ora aqui jaz
O que se pensou como o melhor deles;
Na vida não teve alegria ou paz.
Muitas canções de loucura encheu,
E quando quer que ele tenha morrido
Foi já de mais o tempo que viveu.
Num egotismo viveu sem razão,
Na sua alma em tumulto e desordem
Pensar e sentir, perpétua cisão.
Um inimigo em cada coisa tida
E, sem coragem, seu papel cumpriu
No penar infindável desta vida.
Da dor e do medo um escravo certo,
E pensamentos incoerentes teve
E desejos da loucura perto.
Por artes do mal, aqueles que amou
Tratou pior do que seus inimigos;
Mas em si o pior inimigo achou.
Só de si mesmo se fez seu cantar,
Sempre incapaz de modesto ser,
Fechado em seu louco imaginar.
Todo o seu penar sem esforço ou valia,
Vazios de sentido os receios e dores
Que ignóbeis foram na maioria.
Vil e sem valor assim seu pesar;
Embora em versos mais amargos que ódio
A amarga alma não pôde expressar.
Embora capaz de chorar de ternura,
Era, contudo, miserável e mau —
Mas ninguém pareceu ver nele a loucura.
Que mente saudável não vá poluir
Sua campa; mas, por condizentes,
Traidor e prostituta poderão ir;
Ébrio e dissoluto podem passar
Por ali, depressa, não vão supor
Talvez que o prazer é apenas ar.
Toda a fraca e execrável mente
Que, em corrupção, torturou o homem
Aqui terá seu mestre consciente,
Consciente, pois nele pôde dizer
Que loucura e mal foram o que foram,
Mas que de nenhum se quis desfazer.
Passai pois, ali, quem puder chorar;
Que a podridão trabalhe enquanto, forte,
O vento as folhas mortas arrastar.
Ao seu irmão na terra a dormitar
Que nem sequer em imaginação
O nome de Deus venha perturbar.
Que tenha p'ra sempre a paz conseguido
Longe dos olhos e bocas dos homens
E do que deles o fez dividido.
Ele foi um ser por Deus trabalhado
E ao pecado já de ter vivido
Juntou ele o crime de ter pensado.
1907
In “Poesia”
Edição e tradução de Luísa Freire
Assírio & Alvim – 1999
Alexander Search
Heterónimo de Fernando Pessoa (1888-1935)
OS ABUTRES
Oh, abutres desta terra sem vida
Onde a ventania sopra desabrida,
Que ossos são esses, sob o vosso voo?
– O rei Hermagoras, que aqui habitou.
P’ra outra corte a rainha partiu,
Um novo rei no trono surgiu,
No Oriente estão os seus haveres,
Os cortesãos folgam em prazeres.
Sua carne podre foi para comer,
Sua pele suave foi fácil romper;
Pois o manto negro e o que trazia
Pegaram os servos quando aqui jazia.
O seu esqueleto o sol branqueou
E os vermes comeram o que nele ficou,
E os que ele amou, que acaso aqui passem,
Desdenham dos ossos que sob o céu jazem.
1906
In “Poesia”
Edição e tradução de Luísa Freire
Assírio & Alvim – 1999
Alexander Search
Heterónimo de Fernando Pessoa (1888-1935)
CANÇÃO PARA FANNY
Vimos da onda, da costa
Em som arrebatador,
E da aragem que recosta
Numa nuvem seu langor;
Vimos do rio que murmura,
Da folhagem que sussurra,
Nós vimos alegremente.
Como os pingos do orvalho,
Brilhantes e numerosos
Nós descemos até Fanny
Como os dias luminosos;
Do alto cume do monte
E do cintilar da fonte,
Nós vimos alegremente.
Vimos do vale, da colina,
Da montanha, do valado;
Da tristeza da tardinha
Com tanto conto contado;
Do prado em sua doçura,
Da sombra em sua frescura,
Nós vimos alegremente.
Habitámos no salgueiro
E no ninho que acoberta,
Mas fizemos travesseiro
Do coração do poeta;
E de tudo o que repassa
As almas de amor e graça,
Nós vimos alegremente.
In “Poesia”
Edição e tradução de Luísa Freire
Assírio & Alvim – 1999
Alexander Search
Heterónimo de Fernando Pessoa (1888-1935)
PIEDADE? NÃO!
Piedade? Não! Não a desejo.
Ela seria escárnio maior,
Cruel desdém feito gracejo
Com olhar sério para conter
A rude graça. Não! A dor
Eu chore em paz. Deixem doer!
Piedade? Não! Escárnio venha,
Mais indiferença e mais desdém:
Confortos desses meu lar os tenha.
Mudar em pena o seu olhar
Já dor de mais fora também.
Fingir bondade, não pode ser.
Que os males pareçam como eles são.
Querer mascará-los é escarnecer,
Rara malícia sem coração.
1908
In “Poesia”
Edição e tradução de Luísa Freire
Assírio & Alvim – 1999
Alexander Search
Heterónimo de Fernando Pessoa (1888-1935)
HORROR
Em minha alma, na sua escuridão,
Tão escura como a alma em cada ser,
Por bênção de sua eterna maldição
Lampeja qual vampiro sem corpo tido
Em rara plenitude além saber,
Do universo o íntimo sentido.
E tão cobarde é meu pensamento,
Toda a vida e tudo em mim absorvendo
E me tomando, mais fel do que o fel,
Que eu tenho medo de abrir os meus olhos
E a mente a uma surpresa horrível,
E sinto meu ser quase em supressão
Num horror além da Imaginação.
Mais do que a mais cobarde das feras
Diante do raio em que o céu se fen
Mais do que o ébrio na sua aflição
Que tem visões que o temor transcende,
Mais do que o medo pode conceber,
Mais que a loucura pode fazer crer,
Mais do que o nem sequer imaginado,
O mistério de tudo, o seu sentido
Quando em mim, em plenitude vislumbrado,
Faz aterrar meu ser enlouquecido.
Não fales — não há palavra a ser dita —
Não, nem a sombra dessa sensação,
Da corda da sanidade partida
Em mim, na angústia daquele momento
E na intensidade da negação;
Não penses, não é capaz o pensar
De um tal horror poder expressar.
A mínima coisa fica terrível
E sublime o ínfimo pensamento —
Tudo no mundo fica mais horrível
Do que o sentido da alma do tempo,
Do que o medo da morte profunda,
Do que o remorso em que o crime se afunda.
É como que trazer o conhecimento
De que o mistério é só um jogo tolo.
Contudo se assim o viessem trazer,
Morto estaria o meu pensamento
E morto, como tudo, todo o meu ser:
É isto o que os homens sabem nomear,
Olhando o rosto de Deus, grosseiramente.
E esse sentir pode mais que mutilar
O espírito, mais que embrutecer;
Ele mataria total e prontamente,
Com um susto nem no inferno provado,
Mais do que do terror é conhecido,
Mais do que do medo é imaginado.
1907
In “Poesia”
Edição e tradução de Luísa Freire
Assírio & Alvim – 1999
Alexander Search
Heterónimo de Fernando Pessoa (1888-1935)
ESTRANHEZAS
O estranho e o anormal
Têm um aroma peculiar,
Sempre constantes na alternância
São um sorriso e um suspirar:
O estranho e o anormal
Têm um aroma peculiar.
Eles são flores em vasos guardadas
Que a arte humana não sabe fazer,
O estranho é forte como chicotadas
E o anormal faz-nos estremecer.
Eles são flores em vasos guardadas
Que a arte humana não sabe fazer.
Têm o ardor da paz perturbada,
Dos inquietos salões da alegria,
esta é a fragrância por eles usada
Que ora nos anima, ora nos sacia:
Têm o odor da paz perturbada,
Dos inquietos salões da alegria.
O estranho e o anormal
Têm um aroma peculiar —
O da humana carne que, na mudança
Se fez corrupta sem se queixar:
O estranho e o anormal
Têm um aroma peculiar.
1906
In “Poesia”
Edição e tradução de Luísa Freire
Assírio & Alvim – 1999
Alexander Search
Heterónimo de Fernando Pessoa (1888-1935)
CONVERSA FAMILIAR
Minha velha amiga, Desilusão,
Tinha-me esquecido que estavas aqui.
Perdoa-me. Tentando a desolação
Enganar, quase que fingi,
Perdoa, que tinhas ido embora.
Tu, amiga fiel, estás comigo agora!
Desespero, companheiro de velhos tempos,
Em ti também — embora não olvidado
— Numa espécie de pausa — por momentos
Terei talvez menos pensado.
Esquecer-te inteiramente não consigo.
Amigo, que estás aqui comigo!
E tu, velha companheira, Solidão,
De afecto e esperança carente,
Tu, minha gémea — não seria incorrecção
Se deixasse de parar ‘a tua frente
P’ra jogarmos com o medo e o cuidado?...
Por que vens, ó choro, deixar-me envergonhado?
Não quero mais isso, lágrimas não.
In “Poesia”
Edição e tradução de Luísa Freire
Assírio & Alvim - 1999
Alexander Search
Heterónimo de Fernando Pessoa (1888 - 1935)
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