«CAMPO ABERTO»
DE SEBASTIÃO DA GAMA
Anda ontem eu falava de ti
serenamente
(a propósito:
não te esqueças <le responder
à minha última carta)
e agora
quero falar e não posso,
as palavras, húmidas, escorregam-me na garganta,
deixam-me na boca um sabor amargo.
Recebo a tua morte
como um golpe nas veias
à hora mais distraída,
quando o sol se define por uma linha perpendicular
e nós fazemos um ângulo raso com a vida.
Daí esta angústia,carnívora,
esta contracção súbita das raízes,
este horizonte curvado
de tanto reprimir as lágrimas.
Daí este evidente recuo idos meus passos
quando pretendo alcançar-te.
Mas tu prometeste que voltavas
e um Poeta cumpre sempre o que promete.
Entretanto sossega, meu amigo!:
o campo está definitivamente aberto
e as abelhas começam já
a carregar o pólen para os seus cortiços
e a perpetuar a essência dos teus versos.
Eu fico
com um manto de bruma sobre os ombros
esperando o teu regresso,
com a firme certeza
que só a amizade nos restitui os mortos.
7-2-52
In “ÁRVORE ”
Folhas de Poesia
Direcção e Edição de António Luís Moita, António Ramos Rosa,
José Terra, Luís Amaro, Raul de Carvalho
1.º Fascículo - Inverno de 1951-52
Pág. 91/92
Albano Martins
(1930-2018)
OFÍCIO E MORADA
De barro somos, dizem os oráculos,
solícitas vozes do crepúsculo
ou das manhãs solenes, rotuais.
De heróis e deuses falam
mitos e salmos, dou
tos compêndios de
subtil doutrina. Assim
de urtigas e de musgo
se alimentam as parábolas,
escreve a ciência
os seus epitáfios.
De comércio sabemos.
Com âncoras e astro
lábios medimos
nossa rota inscrita
na retina. Exaustos,
entre aquáticas
florestas, perseguimos
os veados do sol
e da vertigem. Por
obscuras silícias
e cretas navegamos.
In “Os remos escaldantes”
Editora O Oiro do Dia – Porto – 1983
Albano Martins
(1930-2018)
ACONTECIMENTO
Tu choravas e eu ia apagando
com os meus beijos os rastos das tuas lágrimas
– riscos na areia mole e quente do teu rosto.
Choravas como quem se procura.
E eu descobria mundos, inventava nomes,
enquanto ia espremendo com as mãos
o meu sangue todo no teu sangue.
Não sei se o mundo existia e nós existíamos, realmente.
Sei que tudo estava suspenso
esperando não sei que grave acontecimento
e que milhares de insectos paravam e zumbiam nos meus sentidos.
Só a minha boca era uma abelha inquieta
percorrendo e picando o teu corpo de beijos.
Depois só dei pela manhã,
a manhã atrevida,
entrando devagar, muito devagar e acordando-me.
Desviei os meus olhos para ti:
ao longo do teu corpo morriam as estrelas.
A noite partira. E, lentamente,
o sol rompeu no céu da tua boca.
In “ÁRVORE ”
Folhas de Poesia
Direcção e Edição de António Luís Moita, António Ramos Rosa,
José Terra, Luís Amaro, Raul de Carvalho
2.º Fascículo - Inverno de 1951
Pág. 98
Albano Martins
(1930-2018)
PALETA
Tens uma paleta
a que faltam
algumas cores. Talvez
porque há substâncias
a que não soubeste
dar expressão. Ou porque elas
são incolores. Ou porque
em toda a realidade
há fendas
que nem pela palavra
nem pela cor
alguma vez
saberás preencher.
In "Escrito a vermelho"
Editora Campo das Letras
Albano Martins
(N. 1930)
CHOVE LÁ FORA
Há um silêncio enevoado e triste
a saber a demora
sobre tudo o que existe.
Minha alma recolhe-se do frio
e une as mãos às mãos do sentimento.
Chove lá fora. Engrossa o rio
do meu pensamento.
O dia agora é um lençol molhado
estendido ao longo dos caminhos.
Eu sou este dia de março
a arrefecer o amor dos primeiros ninhos.
In “Assim São As Algas”
Editora Campo das Letras
Albano Martins
N. 1930
ENTARDECER NA PRAIA DA LUZ
Espreguiçados, os ramos
das palmeiras filtram
a luz que sobra
do dia. É já noite
nas folhas. O branco
das paredes recolhe
o sangue e o vinho
das buganvílias
e hibiscos. Bebe-os
de um trago: saberás
que, mais do que cegueira, a noite
é uma embriaguez perfeita.
In “Castália e Outros Poemas”
Editora Campo das Letras
Albano Martins
N. 1930
ASSIM SÃO AS ALGAS
Das palavras
que aprendeste
só uma
não tem tradução.
Quando traduzes
o amor, tu sabes
que é já outro o seu nome.
Assim são as algas
quando apodrecem.
In “Escrito a Vermelho”
Editora Campo das Letras
Albano Martins
N. 1930
UMA CIDADE
Uma cidade pode ser
apenas um rio, uma torre, uma rua
com varandas de sal e gerânios
de espuma. Pode
ser um cacho
de uvas numa garrafa, uma bandeira
azul e branca, um cavalo
de crinas de algodão, esporas
de água e flancos
de granito.
Uma cidade
pode ser o nome
dum país, dum cais, um porto, um barco
de andorinhas e gaivotas
ancoradas
na areia. E pode
ser
um arco-íris à janela, um manjerico
de sol, um beijo
de magnólias
ao crepúsculo, um balão
aceso
numa noite
de Junho.
Uma cidade pode ser
um coração,
um punho.
In "Castália e Outros Poemas"
Campo das Letras – 2001
Albano Martins
N. 1930
COMO AS ESPIGAS
Finalmente (embora
saibas que não há
nem fim nem princípio):
deves dizer ainda
que há uma rosa de espuma
no teu peito e que
o seu perfume
não se esgota. E que lá
também existe
uma fonte onde bebem
as flores silvestres. Mas não
humildes, como ias
chamar-lhes: altas
como as espigas
do vento, que no vento
se esquecem e que no vento
amadurecem.
In “Escrito a Vermelho”
Campo das Letras
Albano Martins
N. 1930
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