Sexta-feira, 1 de Novembro de 2019

Recordando... Al Berto

MUDANÇA DE ESTAÇÃO

 

Para te manteres vivo - todas as manhãs

arrumas a casa sacodes tapetes limpas o pó e

o mesmo fazes com a alma - puxas-lhe brilho

regas o coração e o grande feto verde-granulado

 

deixas o verão deslizar de mansinho

para o cobre luminoso do outono e

às primeiras chuvadas recomeças a escrever

como se em ti fertilizasses uma terra generosa

cansada de pousio - uma terra

necessitada de águas de sons de afectos para

intensificar o esplendor do teu firmamento

 

passa um bando de andorinhões rente à janela

sobrevoam o rosto que surge do mar - crepúsculo

donde se soltaram as abelhas incompreensíveis

da memória

 

luzeiros marinhos sobre a pele - peixes

que se enforcam com a corda de noctilucos

estendida nesta mudança de estação

 

In “Horto de incêndio”

Assírio & Alvim

 

Al Berto **

(1848-1997)

 

** Pseudónimo de Alberto Raposo Pidwell Tavares

publicado por cateespero às 00:00
link do post | Deixe seu comentário | favorito
Segunda-feira, 30 de Setembro de 2019

Recordando... Al Berto

SE UM DIA A JUVENTUDE VOLTASSE

 

se um dia a juventude voltasse

na pele das serpentes atravessaria toda a memória

com a língua em teus cabelos dormiria no sossego

da noite transformada em pássaro de lume cortante

como a navalha de vidro que nos sinaliza a vida

 

sulcaria com as unhas o medo de te perder... eu

veleiro sem madrugadas nem promessas nem riqueza

apenas um vazio sem dimensão nas algibeiras

porque só aquele que nada possui e tudo partilhou

pode devassar a noite doutros corpos inocentes

sem se ferir no esplendor breve do amor

 

depois... mudaria de nome de casa de cidade de rio

de noite visitaria amigos que pouco dormem e têm gatos

mas aconteça o que tem de acontecer

não estou triste não tenho projectos nem ambições

guardo a fera que segrega a insónia e solta os ventos

espalho a saliva das visões pela demorada noite

onde deambula a melancolia lunar do corpo

 

mas se a juventude viesse novamente do fundo de mim

com suas raízes de escamas em forma de coração

e me chegasse à boca a sombra do rosto esquecido

pegaria sem hesitações no leme do frágil barco... eu

humilde e cansado piloto

que só de te sonhar me morro de aflição

 

In “O Medo (1974-1986)”

 

Al Berto **

(1948-1997)

 

** Pseudónimo de Alberto Raposo Pidwell Tavares

 

publicado por cateespero às 00:00
link do post | Deixe seu comentário | favorito
Quinta-feira, 1 de Março de 2018

Recordando... Al Berto

ACORDAR TARDE

 

tocas as flores murchas que alguém te ofereceu

quando o rio parou de correr e a noite

foi tão luminosa quanto a mota que falhou

a curva - e o serviço postal não funcionou

no dia seguinte

 

procuras ávido aquilo que o mar não devorou

e passas a língua na cola dos selos lambidos

por assassinos - e a tua mão segurando a faca

cujo gume possui a fatalidade do sangue contaminado

dos amantes ocasionais - nada a fazer

 

irás sozinho vida dentro

os braços estendidos como se entrasses na água

o corpo num arco de pedra tenso simulando

a casa

onde me abrigo do mortal brilho do meio-dia

 

In "Horto de Incêndio"

Ed. Assírio & Alvim - 2000

 

Al Berto **

(1948-1997)

 

** Pseudónimo de Alberto Raposo Pidwell Tavares

publicado por cateespero às 00:00
link do post | Deixe seu comentário | favorito
Sábado, 19 de Novembro de 2016

Recordando... Al Berto

RECADO

 

ouve-me

que o dia te seja limpo e

a cada esquina de luz possas recolher

alimento suficiente para a tua morte

 

vai até onde ninguém te possa falar

ou reconhecer - vai por esse campo

de crateras extintas - vai por essa porta

de água tão vasta quanto a noite

 

deixa a árvore das cassiopeias cobrir-te

e as loucas aveias que o ácido enferrujou

erguerem-se na vertigem do voo - deixa

que o outono traga os pássaros e as abelhas

para pernoitarem na doçura

do teu breve coração - ouve-me

 

que o dia te seja limpo

e para lá da pele constrói o arco de sal

a morada eterna - o mar por onde fugirá

o etéreo visitante desta noite

 

não esqueças o navio carregado de lumes

de desejos em poeira - não esqueças o ouro

o marfim - os sessenta comprimidos letais

ao pequeno-almoço

 

In "Horto de Incêndio"

Assírio & Alvim

 

Al Berto **

(1948-1997)

 

** Pseudónimo de Alberto Raposo Pidwell Tavares

publicado por cateespero às 00:00
link do post | Deixe seu comentário | favorito
Sexta-feira, 13 de Novembro de 2015

Recordando... Al Berto

CORPO

 

Corpo

que te seja leve o peso das estrelas

e de tua boca irrompa a inocência nua

dum lírio cujo caule se estende e

ramifica para lá dos alicerces da casa

 

abre a janela debruça-te

deixa que o mar inunde os órgãos do corpo

espalha lume na ponta dos dedos e toca

ao de leve aquilo que deve ser preservado

 

mas olho para as mãos e leio

o que o vento norte escreveu sobre as dunas

 

levanto-me do fundo de ti humilde lama

e num soluço da respiração sei que estou vivo

sou o centro sísmico do mundo

 

In “A Noite Progride Puxada à Sirga”

 

Al Berto **

(1948-1997)

 

** Pseudónimo de Alberto Raposo Pidwell Tavares

publicado por cateespero às 00:00
link do post | Deixe seu comentário | favorito
Quinta-feira, 19 de Dezembro de 2013

Recordando... Al Berto

OS AMIGOS

 

no regresso encontrei aqueles
que haviam estendido o sedento corpo
sobre infindáveis areias

tinham os gestos lentos das feras amansadas
e o mar iluminava-lhes as máscaras
esculpidas pelo dedo errante da noite

prendiam sóis nos cabelos entrançados
lentamente
moldavam o rosto lívido como um osso
mas estavam vivos quando lhes toquei
depois
a solidão transformou-os de novo em dor
e nenhum quis pernoitar na respiração
do lume

ofereci-lhes mel e ensinei-os a escutar
a flor que murcha no estremecer da luz
levei-os comigo
até onde o perfume insensato de um poema

os transmudou em remota e resignada ausência

(Sete Poemas do Regresso de Lázaro)

In “O medo”
Contexto, Editora

 

Al Berto  **

1948 – 1997

 

** Pseudónimo de Alberto Raposo Pidwell Tavares

publicado por cateespero às 00:00
link do post | Deixe seu comentário | favorito
Sexta-feira, 7 de Dezembro de 2012

Recordando... Al Berto

DIZEM QUE A PAIXÃO O CONHECEU

 

Dizem que a paixão o conheceu
mas hoje vive escondido nuns óculos escuros
senta-se no estremecer da noite enumera
o que lhe sobejou do adolescente rosto
turvo pela ligeira náusea da velhice

 

Conhece a solidão de quem permanece acordado
quase sempre estendido ao lado do sono
pressente o suave esvoaçar da idade
ergue-se para o espelho
que lhe devolve um sorriso tamanho do medo

 

Dizem que vive na transparência do sonho
à beira-mar envelheceu vagarosamente
sem que nenhuma ternura nenhuma alegria
nenhum ofício cantante
o tenha convencido a permanecer entre os vivos.

 

In “O Medo”

Assírio & Alvim – 2009

 

Al Berto  **

1948 – 1997

 

** Pseudónimo de Alberto Raposo Pidwell Tavares

publicado por cateespero às 00:00
link do post | Deixe seu comentário | favorito
Sexta-feira, 1 de Abril de 2011

Recordando... Al Berto

É NO SILÊNCIO

é no silêncio
que melhor ludibrio a morte

não
já não me prendo a nada
mantenho-me suspenso neste fim de século
reaprendo os dias para a eternidade
porque onde termina o corpo deve começar
outra coisa outro corpo

ouço o rumor do vento
vai
alma vai
até onde quiseres ir

(O Medo – Contexto – Lisboa)

 

In “Ler Por Gosto”

Areal Editores

 

Al Berto

1948 – 1997

 

publicado por cateespero às 00:00
link do post | Deixe seu comentário | ler comentários (1) | favorito
Sexta-feira, 4 de Setembro de 2009

Recordando... Al Berto... Poeta do Séc. XX

OFÍCIO DE AMAR

 

Já não necessito de ti
tenho a companhia nocturna dos animais e a peste
tenho o grão doente das cidades erguidas no princípio doutras

galáxias, e o remorso

um dia pressenti a música estelar das pedras abandonei-me ao silencio
é lentíssimo este amor progredindo com o bater do coração
não, não preciso mais de mim
possuo a doença dos espaços incomensuráveis
e os secretos poços dos nómadas

ascendo ao conhecimento pleno do meu deserto
deixei de estar disponível, perdoa-me
se cultivo regularmente a saudade do meu próprio corpo.

 

(O MedoContexto – Lisboa)

 

 

In “Ler Por Gosto”

Areal Editores

 

Al Berto

1948 – 1997

 

 

 

 

sinto-me: Radiante Sempre...
publicado por cateespero às 00:00
link do post | Deixe seu comentário | favorito

.Eu

.pesquisar

 

.Março 2024

Dom
Seg
Ter
Qua
Qui
Sex
Sab
1
2
3
4
5
6
7
8
9
10
11
12
14
15
16
17
18
20
21
22
23
24
25
26
27
28
29
30
31

.Ano XVI

.posts recentes

. Recordando... Al Berto

. Recordando... Al Berto

. Recordando... Al Berto

. Recordando... Al Berto

. Recordando... Al Berto

. Recordando... Al Berto

. Recordando... Al Berto

. Recordando... Al Berto

. Recordando... Al Berto......

.arquivos

. Março 2024

. Fevereiro 2024

. Janeiro 2024

. Dezembro 2023

. Novembro 2023

. Outubro 2023

. Setembro 2023

. Agosto 2023

. Julho 2023

. Junho 2023

. Maio 2023

. Abril 2023

. Março 2023

. Fevereiro 2023

. Janeiro 2023

. Dezembro 2022

. Novembro 2022

. Outubro 2022

. Setembro 2022

. Agosto 2022

. Julho 2022

. Junho 2022

. Maio 2022

. Abril 2022

. Março 2022

. Fevereiro 2022

. Janeiro 2022

. Dezembro 2021

. Novembro 2021

. Outubro 2021

. Setembro 2021

. Agosto 2021

. Julho 2021

. Junho 2021

. Maio 2021

. Abril 2021

. Março 2021

. Fevereiro 2021

. Janeiro 2021

. Dezembro 2020

. Novembro 2020

. Outubro 2020

. Setembro 2020

. Agosto 2020

. Julho 2020

. Junho 2020

. Maio 2020

. Abril 2020

. Março 2020

. Fevereiro 2020

. Janeiro 2020

. Dezembro 2019

. Novembro 2019

. Outubro 2019

. Setembro 2019

. Agosto 2019

. Julho 2019

. Junho 2019

. Maio 2019

. Abril 2019

. Março 2019

. Fevereiro 2019

. Janeiro 2019

. Dezembro 2018

. Novembro 2018

. Outubro 2018

. Setembro 2018

. Agosto 2018

. Julho 2018

. Junho 2018

. Maio 2018

. Abril 2018

. Março 2018

. Fevereiro 2018

. Janeiro 2018

. Dezembro 2017

. Novembro 2017

. Outubro 2017

. Setembro 2017

. Agosto 2017

. Julho 2017

. Junho 2017

. Maio 2017

. Abril 2017

. Março 2017

. Fevereiro 2017

. Janeiro 2017

. Dezembro 2016

. Novembro 2016

. Outubro 2016

. Setembro 2016

. Agosto 2016

. Julho 2016

. Junho 2016

. Maio 2016

. Abril 2016

. Março 2016

. Fevereiro 2016

. Janeiro 2016

. Dezembro 2015

. Novembro 2015

. Outubro 2015

. Setembro 2015

. Agosto 2015

. Julho 2015

. Junho 2015

. Maio 2015

. Abril 2015

. Março 2015

. Fevereiro 2015

. Janeiro 2015

. Dezembro 2014

. Novembro 2014

. Outubro 2014

. Setembro 2014

. Agosto 2014

. Julho 2014

. Junho 2014

. Maio 2014

. Abril 2014

. Março 2014

. Fevereiro 2014

. Janeiro 2014

. Dezembro 2013

. Novembro 2013

. Outubro 2013

. Setembro 2013

. Agosto 2013

. Julho 2013

. Junho 2013

. Maio 2013

. Abril 2013

. Março 2013

. Fevereiro 2013

. Janeiro 2013

. Dezembro 2012

. Novembro 2012

. Outubro 2012

. Setembro 2012

. Agosto 2012

. Julho 2012

. Junho 2012

. Maio 2012

. Abril 2012

. Março 2012

. Fevereiro 2012

. Janeiro 2012

. Dezembro 2011

. Novembro 2011

. Outubro 2011

. Setembro 2011

. Agosto 2011

. Julho 2011

. Junho 2011

. Maio 2011

. Abril 2011

. Março 2011

. Fevereiro 2011

. Janeiro 2011

. Dezembro 2010

. Novembro 2010

. Outubro 2010

. Setembro 2010

. Agosto 2010

. Julho 2010

. Junho 2010

. Maio 2010

. Abril 2010

. Março 2010

. Fevereiro 2010

. Janeiro 2010

. Dezembro 2009

. Novembro 2009

. Outubro 2009

. Setembro 2009

. Agosto 2009

. Julho 2009

. Junho 2009

. Maio 2009

. Abril 2009

. Março 2009

. Fevereiro 2009

. Janeiro 2009

. Dezembro 2008

. Novembro 2008

. Outubro 2008

. Setembro 2008

. Agosto 2008

. Julho 2008

. Junho 2008

. Maio 2008

. Abril 2008

. Março 2008

. Fevereiro 2008

. Janeiro 2008

. Dezembro 2007

. Novembro 2007

. Outubro 2007

. Setembro 2007

. Agosto 2007

. Julho 2007

. Junho 2007

. Maio 2007

. Abril 2007

.tags

. todas as tags

blogs SAPO

.subscrever feeds