QUE IMPORTA
Muitas vezes te esperei, perdi a conta,
longas manhãs te esperei tremendo
no patamar dos olhos. Que importa
que batam à porta, façam chegar
jornais, ou cartas, de amizade um pouco
- tanto pó sobre os móveis da tua ausência.
Se não és tu, que me importa?
Alguém bate, insiste através da madeira,
que me importa que batam à porta,
a solidão é uma espinha
insidiosamente alojada na garganta.
Um pássaro morto no jardim com neve.
In “A Musa Irregular”
Edições Asa
Fernando Assis Pacheco
1937 – 1995
SAÍMOS DOS RUÍDOS DO INVERNO
Saímos dos ruídos do inverno
e saímos do frio em que dormimos
e dormimos ainda ainda temos
sono igual ao inverno e
nada se mudou senão a luz
a saída da luz
que se esforçava no calor do rio
por achar o motor da sua húmida
súbita madrugada ali contida
no silêncio do rio na ferida
por onde pôde a árvore evadir-se da luz
e nada se mudou somente um rasgo
de claridade no clarão da água
rompeu do rio de súbito o motor
In “Os Nomes”
Assírio & Alvim
Gastão Cruz
N. 1941
NATAL
Nasce um deus. Outros morrem. A Verdade
Nem veiu nem se foi: o Erro mudou.
Temos agora uma outra Eternidade,
E era sempre melhor o que passou.
Cega, a Sciencia a inutil gleba lavra.
Louca, a Fé vive o sonho do seu culto.
Um novo deus é só uma palavra.
Não procures nem creias: tudo é oculto.
In “Contemporanea”
Director – José Pacheco
Redactor Principal – Oliveira Mouta
Editor – Agostinho Fernandes
Ano I – Volume II – Nº.6 Ano 1922
Pág. 88
Fernando Pessoa
1888 – 1935
Mantém a grafia original
CONFIDENCIA A PIERROT
Ó Pierrot, velho simbolo cançado,
Toda a saudade em teu olhar se abriga,
E a tua voz num fremito mendiga
Ao Sonho o esquecimento do Passado!...
Irmão Pierrot, ó timido exilado,
Tambem eu ando morto de fadiga,
Minh’alma de si mesma é inimiga,
E eu choro de mim proprio fatigado.
É de mim, é de mim principalmente,
De quem eu mais quizera andar ausente,
E de quem, dia e noite, me acompanho!
Fôra eu pastor, vivesse a errar nos montes...
E perdido entre os ermos horizontes,
De mim e da minh’alma andasse extranho.
Maio 1922
In Revista “Contemporanea”
Director – José Pacheco
Redactor Principal – Oliveira Mouta
Editor – Agostinho Fernandes
Ano I – Volume I – Nº 2 – Ano 1922
Pág. 80
Américo Durão
1894 – 1969
Grafia original
NORA
I
Muito tilintou esta nora.
Isso foi no tempo em que musgos,
heras, caracóis, lagartixas e ferrugem
não se tinham ainda sentado em cima dela.
Agora já não tilinta.
Secou-se-lhe o tilintar, que por sinal
era o som mais húmido do campo,
o mais quebradiço, mas também
mais apto a fecundar.
II
Mas não se extraviou nos complicados
trilhos do tempo:
limitou-se a migrar para dentro de mim.
Guardei-o num baú de que só eu tenho a chave
e donde às vezes o tiro para ouvir de novo
os pingos de prata derretida
caindo insistentes sobre a tarde esguia
que, aproximando-se do fim,
ficava de repente mais sonora
de pássaros e brisas, e de risos
e ralhos vindos da horta.
In “Gaveta do Fundo”
Editora Tinta da China – 2013
A. M. Pires Cabral
N. 1941
SANTA OBIDIENCIA
Ó nobre e humilde obidiencia antiga!
Companheira da paz; do mundo obreira,
Desde que Deus mandou á treva inteira
Que se fizesse luz: e o mando a obriga.
És como a forja ao aço, ao oiro a liga.
Sem ti não ha amor que dure e queira;
Nem ha Familia ou Patria caminheira;
Nem alegre trabalho que prosiga.
Anda na terra desvairada e á solta,
Em vento de soberba e de revolta
E ninguem obedece e crê nos mais.
Vêde Jesus, em seu cruel destino,
Levado pela mão, feito menino...
– “Meu Rei e meu Senhor, onde é que vaes?!” –
Belinho – 1922
In “Contemporanea”
Director – José Pacheco
Redactor Principal – Oliveira Mouta
Editor – Agostinho Fernandes
Ano I – Volume II – Nº.6 - Ano 1922
Pág. 100
Antonio Corrêa d’Oliveira
1878 – 1960
Mantém a grafia original
CANÇÃO
Em sonho, tómo nas minhas,
As tuas mãos de luar,
E tenho duas rolinhas
Nas minhas mãos, a arrulhar.
E depois, em sonho ainda,
Deixando as rolas fugir,
A tua cabeça linda
Afago e beijo, a sorrir.
Continua o sonho mago.
E eu sempre no sonho loiro
Em mil carícias afago
Teu lindo cabelo d’oiro...
E as minhas mãos afagando
Teu cabelo d’oiro mole,
Amor! são a terra andando,
Girando em volta do Sol!
In Revista “Contemporanea”
Director – José Pacheco
Redactor Principal – Oliveira Mouta
Editor – Agostinho Fernandes
Ano I – Volume I – Nº 2 – Ano 1922
Pág. 52
José Bruges d’Oliveira
1899 – 1951
Grafia original
AS RAPARIGAS LÁ DE CASA
Como eu amei as raparigas lá de casa
discretas fabricantes da penumbra
guardavam o meu sono como se guardassem
o meu sonho
repetiam comigo as primeiras palavras
como se repetissem os meus versos
povoavam o silêncio da casa
anulando o chão os pés as portas por onde
saíam
deixando sempre um rastro de hortelã
traziam a manhã
cada manhã
o cheiro do pão fresco da humidade da terra
do leite acabado de ordenhar
(se voltassem a passar todas juntas agora
veríeis como ficava no ar o odor doce e materno
das manadas quando passam)
aproximavam-se as raparigas lá de casa
e eu escutava a inquieta maresia
dos seus corpos
umas vezes duros e frios como seixos
outras vezes tépidos como o interior dos frutos
no outono
penteavam-me
e as suas mãos eram leves e frescas como as folhas
na primavera
não me lembro da cor dos olhos quando olhava
os olhos das raparigas lá de casa
mas sei que era neles que se acendia
o sol
ou se agitava a superfície dos lagos
do jardim com lagos a que me levavam de mãos dadas
as raparigas lá de casa
que tinham namorados e com eles
traíam
a nossa indefinível cumplicidade
eu perdoava sempre e ainda agora perdoo
às raparigas lá de casa
porque sabia e sei que apenas o faziam
por ser esse o lado mau de sua inexplicável bondade
o vício da virtude da sua imensa ternura
da ternura inefável do meu primeiro amor
do meu amor pelas raparigas lá de casa
Habitação das Chuvas
In “121 Poemas Escolhidos”
Editor Salamandra
Emanuel Félix
1936 – 2004
SONETO DA CONQUISTA
Ó grandes cavaleiros afonsinos,
bailando no terreiro da capela,
deixai moças da Maia e verdes pinos,
que é tempo agora de saltar p'ra sela!
E rompe a galopada ao som dos sinos,
– e galga matagais que a morte gela…
Os que tornarem, graves peregrinos,
irão depois em voto a Compostela.
"Por Santiago!" – E a terra se dilata.
O Tejo na distancia é como prata,
a cuja orla a hoste se detem.
Brilha o sinal de Christo sobre os peitos.
E os cavaleiros, sempre insatisfeitos,
voltam scismando no que está p'ra além…
In “Contemporanea”
Director – José Pacheco
Redactor Principal – Oliveira Mouta
Editor – Agostinho Fernandes
Ano I – Volume II – Nº.6 - Ano 1922
Pág. 133
António Sardinha
1887 – 1925
Mantém a grafia original
DO POEMA
O problema não é
meter o mundo no poema; alimentá-lo
de luz, planetas, vegetação. Nem
tão-pouco
enriquecê-lo, ornamentá-lo
com palavras delicadas, abertas
ao amor e à morte, ao sol, ao vício,
aos corpos nus dos amantes –
o problema é torná-lo habitável, indispensável
a quem seja mais pobre, a quem esteja
mais só
do que as palavras
acompanhadas
no poema.
In “Ode & Ceia” – Poesia 1955-1984
Publicações Dom Quixote – 1985
Casimiro de Brito
N. 1938
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