QUANDO ESTOU SÓ RECONHEÇO
Quando estou só reconheço
Se por momentos me esqueço
Que existo entre outros que são
Como eu sós, salvo que estão
Alheados desde o começo.
E se sinto quanto estou
Verdadeiramente só,
Sinto-me livre mas triste.
Vou livre para onde vou,
Mas onde vou nada existe.
Creio contudo que a vida
Devidamente entendida
É toda assim, toda assim.
Por isso passo por mim
Como por cousa esquecida.
9-8-1931
In “Novas Poesias Inéditas – Fernando Pessoa”
Direcção, recolha e notas de Maria do Rosário Marques Sabino
e Adelaide Maria Monteiro Sereno
Editora Ática - 1993 - 4ª ed.
Fernando Pessoa
(1888-1935)
EU AMO TUDO O QUE FOI
Eu amo tudo o que foi,
Tudo o que já não é,
A dor que já me não dói,
A antiga e errónea fé,
O ontem que dor deixou,
O que deixou alegria
Só porque foi, e voou
E hoje é já outro dia.
1931
In “Poesias Inéditas (1930-1935)”
Nota prévia de Jorge Nemésio
Editora Ática - 1990
Fernando Pessoa
(1888-1935)
NESTA GRANDE OSCILAÇÃO
Nesta grande oscilação
Entre crer e mal descrer
Transtorna-se o coração
Cheio de nada saber;
E, alheado do que sabe
Por não saber o que é,
Só um instante lhe cabe,
Que é o conhecer a fé —
A fé, que os astros conhecem
Porque é a aranha que está
Na teia, que todos tecem,
E é a vida que neles há.
5-5-1934
In “Poemas Esotéricos - Fernando Pessoa” – 1ª edição
Edição de Fernando Cabral Martins e Richard Zenith
Assírio & Alvim
Fernando Pessoa
(1888-1935)
O GRANDE ESPECTRO, QUE FAZ SOMBRA E MEDO
O grande espectro, que faz sombra e medo,
Ergueu-se ao pé de mim, e eu temi-o;
Não porém com pavor, que nasce cedo,
Mas com um negro medo, oco e tardio.
Trajava o corpo seu vácuo e segredo
E o espaço irreal, onde formava frio,
Era como os desertos do degredo,
Um não-ser mais vazio que o vazio.
Não mais o vi, mas sinto a cada hora
Ao pé da alma, que teme e já não chora,
A álgida consequência e o vulto nada,
E cada passo em minha senda incerta
Um eco o acompanha, que deserta
Da atenção fria, inutilmente dada.
9-2-1930
In “Poemas Esotéricos - Fernando Pessoa” – 1ª edição
Edição de Fernando Cabral Martins e Richard Zenith
Assírio & Alvim
Fernando Pessoa
(1888-1935)
A MINHA VIDA É UM BARCO ABANDONADO
A minha vida é um barco abandonado
Infiel, no ermo porto, ao seu destino.
Por que não ergue ferro e segue o atino
De navegar, casado com o seu fado?
Ah! falta quem o lance ao mar, e alado
Torne seu vulto em velas; peregrino
Frescor de afastamento, no divino
Amplexo da manhã, puro e salgado.
Morto corpo da acção sem vontade
Que o viva, vulto estéril de viver,
Boiando à tona inútil da saudade.
Os limos esverdeiam tua quilha,
O vento embala-te sem te mover,
E é para além do mar a ansiada Ilha.
Cancioneiro
In “Fernando Pessoa – Antologia Poética” - 3ª. Edição
Biblioteca Ulisses de Autores Portugueses
Editora Ulisses
Fernando Pessoa
(1888-1935)
CORPOS
O meu corpo é o abismo entre eu e eu.
Se tudo é um sonho sob o sonho aberto
Do céu irreal, sonhar-te é possuir-te,
E possuir-te é sonhar-te de mais perto
As almas sempre separadas,
Os corpos são o sonho de uma ponte
Sobre um abismo que nem margens tem
Eu porque me conheço, me separo
De mim, e penso, e o pensamento é avaro
A hora passa. Mas meu sonho é meu.
s.d.
In “Pessoa Inédito”
Orientação, coordenação e prefácio de Teresa Rita Lopes
Livros Horizonte - 1933
Pág. 7
Fernando Pessoa
(1888-1935)
SANGRA-ME O CORAÇÃO
Sangra-me o coração. Tudo que penso
A emoção mo tomou. Sofro esta mágoa
Que é o mundo imoral, regrado e imenso,
No qual o bem é só como um incenso
Que cerca a vida, como a terra a água.
Todos os dias, oiça ou veja, dão
Misérias, males, injustiças — quanto
Pode afligir o estéril coração.
E todo anseio pelo bem é vão,
E a vontade tão vã como é o pranto.
Que Deus duplo nos pôs na alma sensível
Ao mesmo tempo os dons de conhecer
Que o mal é a norma, o natural possível,
E de querer o bem, inútil nível,
Que nunca assenta regular no ser?
Com que fria esquadria e vão compasso
Que invisível Geómetra regrou
As marés deste mar de mau sargaço —
O mundo fluido, com seu tempo e ‘spaço,
Que ele mesmo não sabe quem criou?
Mas, seja como for, nesta descida
De Deus ao ser, o mal teve alma e azo;
E o Bem, justiça espiritual da vida,
É perdida palavra, substituída
Por bens obscuros, fórmulas do acaso.
Que plano extinto, antes de conseguido,
Ficou só mundo, norma e desmazelo?
Mundo imperfeito, porque foi erguido?
Como acabá-lo, templo inconcluído,
Se nos falta o segredo com que erguê-lo?
O mundo é Deus que é morto, e a alma aquele
Que, esse Deus exumado, reflectiu
A morte e a exumação que houveram dele.
Mas ‘stá perdido o selo com que sele
Seu pacto com o vivo que caiu.
Por isso, em sombra e natural desgraça,
Tem que buscar aquilo que perdeu —
Não ela, mas a morte que a repassa,
E vem achar no Verbo a fé e a graça —
A nova vida do que já morreu.
Porque o Verbo é quem Deus era primeiro,
Antes que a morte, que o tornou o mundo,
Corrompesse de mal o mundo inteiro:
E assim no Verbo, que é o Deus terceiro,
A alma volve ao Bem que é o seu fundo.
26-4-1934
In “Poemas Esotéricos - Fernando Pessoa”
Edição de Fernando Cabral Martins e Richard Zenith
Assírio & Alvim - 1ª edição Abril.2014
Fernando Pessoa
(1888 - 1935)
ANÁLISE
Tão abstracta é a ideia do teu ser
Que me vem de te olhar, que, ao entreter
Os meus olhos nos teus, perco-os de vista,
E nada fica em meu olhar, e dista
O teu corpo do meu ver tão longemente,
E a ideia do teu ser fica tão rente
Ao meu pensar olhar-te, e ao saber-me
Sabendo que tu és, que, só por ter-me
Consciente de ti, nem a mim sinto.
E assim, neste ignorar-me a ver-te, minto
A ilusão da sensação, e sonho,
Não te vendo, nem vendo, nem sabendo
Que te vejo, ou sequer que sou, risonho
Do interior crepúsculo tristonho
Em que sinto que sonho o que me sinto sendo.
Do sonho e pouco da vida.
12-1911
In “Obra Poética e em Prosa” - Vol. I - Fernando Pessoa
(Introd., org., biobibliografia e notas de António Quadros
e Dalila Pereira da Costa)
Lello - 1986
Fernando Pessoa
(1888 - 1935)
SOSSEGA CORAÇÃO!
Sossega, coração! Não desesperes!
Talvez um dia, para além dos dias,
Encontres o que queres porque o queres.
Então, livre de falsas nostalgias,
Atingirás a perfeição de seres.
Mas pobre sonho o que só quer não tê-lo!
Pobre esperança a de existir somente!
Como quem passa a mão pelo cabelo
E em si mesmo se sente diferente,
Como faz mal ao sonho o concebê-lo!
Sossega, coração, contudo! Dorme!
O sossego não quer razão nem causa.
Quer só a noite plácida e enorme,
A grande, universal, solente pausa
Antes que tudo em tudo se transforme.
2 - 8 - 1933
In “Poesia 1931-1935 e não datada”
Ed. Manuela Parreira da Silva, Ana Maria Freitas, Madalena Dine
Assírio & Alvim - 2006
Fernando Pessoa
(1888-1935)
NATAL
Nasce um deus. Outros morrem. A Verdade
Nem veiu nem se foi: o Erro mudou.
Temos agora uma outra Eternidade,
E era sempre melhor o que passou.
Cega, a Sciencia a inutil gleba lavra.
Louca, a Fé vive o sonho do seu culto.
Um novo deus é só uma palavra.
Não procures nem creias: tudo é oculto.
In “Contemporanea”
Director – José Pacheco
Redactor Principal – Oliveira Mouta
Editor – Agostinho Fernandes
Ano I – Volume II – Nº.6 Ano 1922
Pág. 88
Fernando Pessoa
1888 – 1935
Mantém a grafia original
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