APETECIA-LHE CHORAR
Apetecia-lhe chorar.
Gritar palavras sem nexo
até enrouquecer.
À distância da raiva,
era visível ainda, a porta
que ele usara para ir embora.
Assim. Como quem levanta a bandeira
do luto na fronteira do olhar.
Era, agora, interminável o vazio a resvalar
pelos tabiques, pelos móveis, pelo corpo.
Tinha insónias.
E, na língua, cicatrizes profundas
de tanto soletrar o nome dele.
O som da sua voz como um chicote.
In “A solidão é como o vento”
Poética Edições
Graça Pires
(N.1946)
SONETO DO AMOR DIFÍCIL
A praia abandonada recomeça
logo que o mar se vai, a desejá-lo:
é como o nosso amor, somente embalo
enquanto não é mais que uma promessa...
Mas se na praia a onda se espedaça,
há logo nostalgia duma flor
que ali devia estar para compor
a vaga em seu rumor de fim de raça.
Bruscos e doloridos, refulgimos
no silêncio de morte que nos tolhe,
como entre o mar e a praia um longo molhe
de súbito surgido à flor dos limos.
E deste amor difícil só nasceu
desencanto na curva do teu céu.
In “Obra Poética”
Assírio & Alvim
David Mourão-Ferreira
(1927-1996)
PEQUENO BILHETE DO EXÍLIO
Se tua noite fosse a minha noite
e meu fosse o teu dia
se teu caminho fosse o meu caminho
e tua casa a minha
se teu pão e teu sal fossem os meus
e teu fosse o meu vinho
não choraria as lágrimas que choro
e a saudade não me queimaria.
Quando a tua vida começa
meu amigo
eu morro a minha morte, cada dia.
In “Ofício de Trevas”
Editora Livros de Portugal
Carlos Maria de Araújo
(1921-1962)
PROFECIA
Ai de quem sonha o futuro
de olhos fitos no passado!
Ai de quem vive abraçado
à sua estátua de bronze!
Ai daquele que já sabe
por onde abrir o caminho!
O seu destino tem certo:
que tudo lhe há-de saber
a comida já comida
que nada pode viver
sem lhe parecer já vivido
In “Sempre e Sem Fim”
Adolfo Casais Monteiro
(1908-1972)
UM BARCO SONHA COM OUTRO BARCO
Um barco sonha com outro barco
oferece-lhe orquídeas de som
um túmulo gótico limos todo o mistério
lá onde a abóbada assenta sobre a coluna vertebral
que guarda palavras algemadas
e os passos dos peregrinos a caminho da ausência.
Estamos a um dia do fim de qualquer coisa.
Pela mão que guardo em todos os peitos
pelo contínuo marulhar na solidão na minha fronte
por esta maresia que vinda do sonho
sobe e sufoca
pela noite que se exprime no mais profundo de cada dia
ofereço-te a eternidade
como um trapo velho dentro de mim.
Todos os comboios atravessam o meu corpo
todos os diamantes se suicidam à minha porta
todas as mãos têm movimentos copiados do mar.
Ao meu lado sobre mim dentro de mim
como ao fim das tardes no inferno
o segredo que a sete chaves guardamos
passam-no agora as árvores em voz baixa uma às outras.
Oh meu amor o fim não existe tudo é recomeço
e tudo recomeça pelo fim.
Não esqueças esses momentos de transgressão
mais vida do que a vida
como o cavalo que corre dentro de si próprio
cego
até o infinito que não há.
África 61
In “Homenagem à Realidade”
Editor Escrituras
Artur do Cruzeiro Seixas
(1920-2020)
A UMA OPERÁRIA JOVEM
Como a árvore que pode
dar apenas seu fruto,
floresces. E sobre a terra
amplias o horizonte de tua sombra.
Na fábrica as engrenagens
multiplicam o movimento
e as polias giram como vento
em remoinho.
Na fábrica os fatos
repetem-se como as estações,
as estrelas iguais de cada noite,
o pão fresco de todas as manhãs.
Teu sangue circula como a abelha
na órbita da rosa
e, como a água dos estanques, há de voltar
à fonte.
Na fábrica
os espelhos sonham com teu riso.
In “À Margem do Tempo”
Domingos Carvalho da Silva
(1915- 2003)
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