Sábado, 31 de Agosto de 2024

Recordando... Sidónio Muralha

COM SOL E SAL, EU ESCREVO

 

Escrevo no meio de tantas derrocadas,

tantas ruínas, tanto desespero,

mas também tanta esperança renovada,

tantos jovens que, no meio do desencanto,

mantêm a pureza das cascatas,

tantas crianças que são a primavera

que chegará um dia e ficará

no coração da terra, quantas vezes

mutilada, humilhada por aqueles

que trazem a ganância no seu sangue.

Com sol e sal eu escrevo.

E todos juntos vamos transformar,

com tudo o que nós temos de coragem,

este mundo idiota

que envia flores aos mortos

e atira pedradas aos vivos.

 

In "Com sol e sal, eu escrevo” 1977

 

Sidónio Muralha

(1920-1982)

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Domingo, 25 de Agosto de 2024

Recordando... Margarida Vale de Gato

RESSABIADAS

 

Talvez lá no fundo acredite

que os seres humanos são todos sensivelmente

os mesmos em toda a parte, mas então

necessariamente as mulheres são mais.

Costumes que frequentamos:

o arame da loiça, os panos dos pratos, os ganchos e as linhas

do estendal, a vinha-de-alhos, o fogão,

o alguidar, guardamos os restos, torcemos

os trapos, os nossos recados, os nossos sacos,

os nossos ovos.

 

Certamente que eles, em grande maioria,

escanhoam os queixos e gostam

de arejar, mas não médicos, polícias,

engraxadores, economistas

e os vários naipes da banda filarmónica

nós somos todas domésticas, mesmo

 

assim não nos entendemos, e

nem serve escrever isto

que o maniqueísmo em traços largos

resvala na aldrabice, e a poesia

vem dos anjos já se sabe

carecidos de sexo.

 

E aliás que me rala a mim,

levo a minha vida e tenho o amor

de que não desconfio

e se consolo o cio e a fome

decerto falo de cor,

nem é por isso que me doem os calos

mas por causa dos bicos

dos vossos saltos

no desnível dos soalhos, refinadas

galdérias que se tomam a sério,

pestanas certeiras e beiços

que brilham, línguas que estalam

e mamas que chispam

 

corada invoco a imagem mal tirada

da fêmea recortada ao macho que a conforma;

sei que desminto qualquer laço comunal

e seja como for ninguém pediu

o meu palpite, pelo que não me habilito

e me desquito, acinte,

mudo, era eu

quem estava mal.

 

In “Mulher ao Mar”

Editora Mariposa Azual

 

Margarida Vale de Gato

(N.1973)

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Segunda-feira, 19 de Agosto de 2024

Recordando... Maria Velho da Costa

TODAS AS COISAS REVÊM A SEU TERMOS

 

Todas as coisas revêm a seu termos

se mantido o começo

o seu (de cada uma) pedúnculo,

sinal; fiel a si só quem outrem ladeia

no recreio de achá-lo só contíguo

ao desejado, o longes,

desfeitos assim lios, tramas

(ter, ter, só do engano e não da jorna).

 

Que, sob a mesma traça,

mão que desenhe o sacro de seu nome

praça de si condigna queira

e laude como, à ida,

e perseguindo a encoberta desavinda vinda,

a pele lhe não foi raias de mortal.

 

Onde achar paradouro do ir indo

que as mesmas vascas agasalhe e cumpra?

 

O olhar permutado, a líquida juntura

não congelada porque bem fugida,

o integral dum sim já denegado,

o tão de si senhor que em desistir-se tento tenha

e embrumado (nunca por nunca certo)

vagueie um solidíssimo ficar?

 

Conjugar montaria sem quebreiras

no quadrado de cama jugulada,

(a terra em trevas);

amar redondo (em giração) e a eito;

casal que por fendido

a casa casta aberta e hoste rotornante

pátria dos pés crescentes caminheiros faça."

 

In “Desescrita”

Editora Afrontamento

 

Maria Velho da Costa

(1938-2020)

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Terça-feira, 13 de Agosto de 2024

Recordando... Gil Vicente

BRANCA ESTAIS COLORADA

 

Branca estais e colorada,

Virgem sagrada!

 

Em Belém, vila do amor,

Da rosa nasceu a flor!

Virgem sagrada!

 

Em Belém, vila do amar

Nasceu a rosa do rosal!

Virgem sagrada!

 

Da rosa nasceu a flor:

Jesus, nosso Salvador!

Virgem sagrada!

 

Nasceu a rosa do rosal:

Deus e homem natural!

Virgem sagrada!

 

“Auto da Feira”

 

(Grafia actualizado por Carolina Michaëlis de Vasconcelos)

 

In “As cem melhores poesias (líricas) da língua portuguesa”

Editor Ferreira Lda.

 

Gil Vicente

(1465-1536)

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Quarta-feira, 7 de Agosto de 2024

Recordando... Maria Irene Costa

TARDE DE ESTIO

 

Lufada de fresco ar,

Em tarde calma de Estio.

Sombra de árvore amiga,

Água cantante do rio.

 

Do meio do milho, uma cantiga,

Na voz de fresca rapariga,

Quebra o quente silêncio.

Uma abelha zumbindo,

À flor, o néctar, pedindo,

Pousa na palma da mão,

Esquecendo de espetar o ferrão…

 

Sentindo a natureza tão bela,

Sou a nova Cinderela.

A Fada-madrinha mudando o fado:

Tomando em suas mãos o meu rosto,

O amoroso Príncipe Encantado,

Beija-me, dum e doutro lado…

 

In “O Livro da Nena” – Fevereiro de 2008

Papiro Editora

 

Maria Irene Costa

(N.1951)

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Quinta-feira, 1 de Agosto de 2024

Recordando... Irene Silva

NÃO VÁS…

 

Não vás...

Enrola-te neste reduto escaldante

Que a longa Primavera recriou.

Abriga-te da tempestade

Que, entre um e outro adeus

Volve tsunami,

De lágrimas sorvidas

Que não podem rolar!

Não vás...

Esse trilho é um rochedo sem chama!

Acaba num sepulcro estanque

Onde almas incautas aprisionam os sonhos!

Não vás...

Liberta-te das epidemias

Que poluem a vida!

Do viajante nocturno

A adormecer os seus monstros!

Não vás...

Habitas-me!

E em cada ausência

Demoro-me na minha infinidade.

Não vás...

 

In "Poemas"

 

Irene Silva

(N.1954)

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