COM SOL E SAL, EU ESCREVO
Escrevo no meio de tantas derrocadas,
tantas ruínas, tanto desespero,
mas também tanta esperança renovada,
tantos jovens que, no meio do desencanto,
mantêm a pureza das cascatas,
tantas crianças que são a primavera
que chegará um dia e ficará
no coração da terra, quantas vezes
mutilada, humilhada por aqueles
que trazem a ganância no seu sangue.
Com sol e sal eu escrevo.
E todos juntos vamos transformar,
com tudo o que nós temos de coragem,
este mundo idiota
que envia flores aos mortos
e atira pedradas aos vivos.
In "Com sol e sal, eu escrevo” 1977
Sidónio Muralha
(1920-1982)
RESSABIADAS
Talvez lá no fundo acredite
que os seres humanos são todos sensivelmente
os mesmos em toda a parte, mas então
necessariamente as mulheres são mais.
Costumes que frequentamos:
o arame da loiça, os panos dos pratos, os ganchos e as linhas
do estendal, a vinha-de-alhos, o fogão,
o alguidar, guardamos os restos, torcemos
os trapos, os nossos recados, os nossos sacos,
os nossos ovos.
Certamente que eles, em grande maioria,
escanhoam os queixos e gostam
de arejar, mas não médicos, polícias,
engraxadores, economistas
e os vários naipes da banda filarmónica
nós somos todas domésticas, mesmo
assim não nos entendemos, e
nem serve escrever isto
que o maniqueísmo em traços largos
resvala na aldrabice, e a poesia
vem dos anjos já se sabe
carecidos de sexo.
E aliás que me rala a mim,
levo a minha vida e tenho o amor
de que não desconfio
e se consolo o cio e a fome
decerto falo de cor,
nem é por isso que me doem os calos
mas por causa dos bicos
dos vossos saltos
no desnível dos soalhos, refinadas
galdérias que se tomam a sério,
pestanas certeiras e beiços
que brilham, línguas que estalam
e mamas que chispam
corada invoco a imagem mal tirada
da fêmea recortada ao macho que a conforma;
sei que desminto qualquer laço comunal
e seja como for ninguém pediu
o meu palpite, pelo que não me habilito
e me desquito, acinte,
mudo, era eu
quem estava mal.
In “Mulher ao Mar”
Editora Mariposa Azual
Margarida Vale de Gato
(N.1973)
TODAS AS COISAS REVÊM A SEU TERMOS
Todas as coisas revêm a seu termos
se mantido o começo
o seu (de cada uma) pedúnculo,
sinal; fiel a si só quem outrem ladeia
no recreio de achá-lo só contíguo
ao desejado, o longes,
desfeitos assim lios, tramas
(ter, ter, só do engano e não da jorna).
Que, sob a mesma traça,
mão que desenhe o sacro de seu nome
praça de si condigna queira
e laude como, à ida,
e perseguindo a encoberta desavinda vinda,
a pele lhe não foi raias de mortal.
Onde achar paradouro do ir indo
que as mesmas vascas agasalhe e cumpra?
O olhar permutado, a líquida juntura
não congelada porque bem fugida,
o integral dum sim já denegado,
o tão de si senhor que em desistir-se tento tenha
e embrumado (nunca por nunca certo)
vagueie um solidíssimo ficar?
Conjugar montaria sem quebreiras
no quadrado de cama jugulada,
(a terra em trevas);
amar redondo (em giração) e a eito;
casal que por fendido
a casa casta aberta e hoste rotornante
pátria dos pés crescentes caminheiros faça."
In “Desescrita”
Editora Afrontamento
Maria Velho da Costa
(1938-2020)
BRANCA ESTAIS COLORADA
Branca estais e colorada,
Virgem sagrada!
Em Belém, vila do amor,
Da rosa nasceu a flor!
Virgem sagrada!
Em Belém, vila do amar
Nasceu a rosa do rosal!
Virgem sagrada!
Da rosa nasceu a flor:
Jesus, nosso Salvador!
Virgem sagrada!
Nasceu a rosa do rosal:
Deus e homem natural!
Virgem sagrada!
“Auto da Feira”
(Grafia actualizado por Carolina Michaëlis de Vasconcelos)
In “As cem melhores poesias (líricas) da língua portuguesa”
Editor Ferreira Lda.
Gil Vicente
(1465-1536)
TARDE DE ESTIO
Lufada de fresco ar,
Em tarde calma de Estio.
Sombra de árvore amiga,
Água cantante do rio.
Do meio do milho, uma cantiga,
Na voz de fresca rapariga,
Quebra o quente silêncio.
Uma abelha zumbindo,
À flor, o néctar, pedindo,
Pousa na palma da mão,
Esquecendo de espetar o ferrão…
Sentindo a natureza tão bela,
Sou a nova Cinderela.
A Fada-madrinha mudando o fado:
Tomando em suas mãos o meu rosto,
O amoroso Príncipe Encantado,
Beija-me, dum e doutro lado…
In “O Livro da Nena” – Fevereiro de 2008
Papiro Editora
Maria Irene Costa
(N.1951)
NÃO VÁS…
Não vás...
Enrola-te neste reduto escaldante
Que a longa Primavera recriou.
Abriga-te da tempestade
Que, entre um e outro adeus
Volve tsunami,
De lágrimas sorvidas
Que não podem rolar!
Não vás...
Esse trilho é um rochedo sem chama!
Acaba num sepulcro estanque
Onde almas incautas aprisionam os sonhos!
Não vás...
Liberta-te das epidemias
Que poluem a vida!
Do viajante nocturno
A adormecer os seus monstros!
Não vás...
Habitas-me!
E em cada ausência
Demoro-me na minha infinidade.
Não vás...
In "Poemas"
Irene Silva
(N.1954)
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