Terça-feira, 30 de Abril de 2024

Recordando... Maria de Lourdes Belchior

COSTUMES BURGUESES

 

Steack au poivre... assim mesmo...

Não é qualquer bifeco de vaca portuguesa...

e quanto a especiarias, há séculos as deixámos

cair em mãos alheias. Sempre é mais saborosa

a pimenta francesa. E caracóis parisienses,

com requintes de garfo especial para os extrair das conchas

Nenhum parentesco com a lusitana caracoleira,

por mais bem temperada que seja...

Requintes burgueses, saborosos e caros

S. João Baptista comia gafanhotos no deserto

O Cristo porém não faltou a banquetes

e não consta que fizesse ali jejum...

Mas os pobres do Biafra? E os chinas de Cantão

Xangai ou Pequim com a malga diária de arroz

para a sua fome?

Desigualdades controversas... Mas, não come camarão

e lagostim o proletário, endinheirado pela Revolução?

Comentário reaccionário – dirão – E o cristão?

Há-de praticar os mesmos costumes burgueses

dos proletários ou dos burgueses seus irmãos?

Santa Teresa disse –  por piada? –  bem achada:

quando penitência, penitência

quando perdiz, perdiz. Encontrada

a solução para a equação?

Qual equação?

 

In “Gramática do Mundo”
INCA - Imprensa Nacional - Casa da Moeda, 1985

 

Maria de Lourdes Belchior

(1923-1999)

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Quinta-feira, 25 de Abril de 2024

Recordando... Manuel Alegre  

SALGUEIRO MAIA

Ficaste na pureza inicial
do gesto que liberta e se desprende.
Havia em ti o símbolo e o sinal
havia em ti o herói que não se rende.

 

Outros jogaram o jogo viciado
para ti nem poder nem sua regra.
Conquistador do sonho inconquistado
havia em ti o herói que não se integra.

 

Por isso ficarás como quem vem
dar outro rosto ao rosto da cidade.
Diz-se o teu nome e sais de Santarém
trazendo a espada e a flor da liberdade.

 

In “País de Abril” 
Edições Dom Quixote, 2016

 

Manuel Alegre

(N.1936)

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Sexta-feira, 19 de Abril de 2024

Recordando... Natália Correia

A CASA DO POETA

 

Pelo meu acto de inventar amigos
como quem lá de cima vê Lisboa
a acusar-se numa fotografia
tirada de um avião e lhe perdoa

minha propriedade vertical
levanto como quem na hora extrema
se salva a tempo como quem ao inimigo
oferece a face esquerda do poema.

Ó pedreiros do meu amor de sempre
fazendo a minha casa com a alegria
de quem se escolhe a morrer pelos outros
deita uma lágrima e merece o dia!

Casa que não se esconde atrás das portas
endereço de guerra redimida
roupa de amor a pingar sobre quem passa
renda que pago em sofrimento à vida

minha casa ingénua de armistício
assinado entre mim e os descrentes
casa de versos que escrevo na brancura
da cal que empalidece pelos ausentes.

No acalento da sala que é de estar
entre algodões porque é sala de ser
esperamos que o elefante solitário
da tarde se afaste para morrer

e a noite com alcoólicos gorjeios
de pássaros de gim dentro dos copos
mata a sede de sermos um infinito
animal em lacerados corpos.

Plural solidão de casa muita
espaçoso afago casa substância
de amigos que encontramos no futuro
dançando o que nos resta de crianças.

 

In "Poesia Completa"  
Publicações Dom Quixote, 1999   
Pág. 319

 

Natália Correia

(1923-1993)

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Sábado, 13 de Abril de 2024

Recordando... Maria de Carvalho

A NOSSA TERRA

 

A mossa terra! um ponto abençoado…

Muitas vezes no mappa mal se vê,

Mas para nóa avulta illuminado,

Em letras de ouro, que a noss’alma lê.

 

Tudo é nosso na terra em que nascemos:

– O céu, o campo, o sol que nos aquece.

Tudo nos fala, tudo conhecemos,

                  E tudo nos conhece.

 

Quanto mais o destino nos arrasta

                 Para longe do lar,

E mais da nossa terra nos afasta,

Como a saudade ao coração não basta,

Maior é o desejo de voltar.

 

A nossa terra está sempre ligada

Aos sonhos da ventura procurada

                  Ás idéas do Bem.

Para nós sempre bella e sempre amada,

A nossa terra é como a nossa Mãe.

 

(mantém a grafia original)

 

In “Serões”

Magazine mensal illustrado

N.º 61 - Julho 1910

Pág. 22

 

Maria de Carvalho

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Domingo, 7 de Abril de 2024

Recordando... Manuel da Fonseca

TU E EU MEU AMOR

Tu e eu meu amor
meu amor eu e tu
que o amor meu amor
é o nu contra o nu.

Nua a mão que segura
outra mão que lhe é dada
nua a suave ternura
na face apaixonada
nua a estrela mais pura
nos olhos da amada
nua a ânsia insegura
de uma boca beijada.

Tu e eu meu amor
meu amor eu e tu
que o amor meu amor
é o nu contra o nu.

Nu o riso e o prazer
como é nua a sentida
lágrima de não ver
na face dolorida
nu o corpo do ser
na hora prometida
meu amor que ao nascer
nus viemos à vida.

Tu e eu meu amor
meu amor eu e tu
que o amor meu amor
é o nu contra o nu.

Nua nua a verdade
tão forte no criar
adulta humanidade
nu o querer e o lutar
dia a dia pelo que há-de
os homens libertar
amor que a eternidade
é ser livre e amar.

Tu e eu meu amor
meu amor eu e tu
que o amor meu amor
é o nu contra o nu.


In "Poemas para Adriano"

Manuel da Fonseca

(1911-1993)

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Segunda-feira, 1 de Abril de 2024

Recordando... Natércia Freire

QUANDO EU TIVER A CERTEZA

 

Quando eu tiver a certeza

de que nada foi verdade,

e que dentro da tristeza

da minha serenidade

nunca o Sonho foi beleza,

nem a Poesia certeza,

nem o Amor foi verdade...

 

Quando eu souber bem a fundo

que era cinza a minha pele;

que ninguém me viu no mundo,

e que eu não passei por ele...

 

Quando, de brumas envolta,

só vir casarões vazios,

e só as vozes à solta

me despertem de arrepios...

 

Quando o frio me despir

as ilusões que julguei,

as vitórias que criei,

os movimentos sagrados,

e já nada me entristeça...

E nem na sombra, em retratos,

já ninguém me reconheça,

– se  nem retratos tirei! –

nos  olhos me apagarei.

 

Quando eu tiver a certeza

de que nada foi verdade:

nem os bens, nem a Beleza,

nem a minha imensidade,

nem os braços que estendi,

nem Espaços que viajei,

nem ilhas que nunca vi

mas chão onde descansei,

nem noites de danças lentas

em que me vinham buscar

– madrugadas  nevoentas

de ir com Eles para o mar...

Nem esse gosto impreciso

– ténue gosto de salgado –

que  há-de haver no Paraíso

quando está longe o pecado...

 

Quando eu tiver a certeza

de que nada foi verdade...

– pedra me sinta atirada

entre as coisas sem idade...

 

In "Atlântico: revista lusa brasileira”

Nova Série, n.º 6 de 2 de Junho de 1948

 

Natércia Freire

(1919-2004)

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