A TERCEIRA MISÉRIA É ESTA
A terceira miséria é esta, a de hoje.
A de quem já não ouve nem pergunta.
A de quem não recorda. E, ao contrário
Do orgulhoso Péricles, se torna
Num entre os mais, num entre os que se entregam,
Nos que vão misturar-se como um líquido
Num líquido maior, perdida a forma,
Desfeita em pó a estátua.
In "A Terceira Miséria"
Relógio d’Água - 2012
Hélia Correia
(N.1949)
A TEIA DA ESPERANÇA
A teia tecida
nas noites de esperança,
rasgada e ferida,
segue a nossa andança.
E juntos, mãos dadas,
olhamos pra ela,
vontades paradas,
quais barcos sem vela.
Amigo, que o braço
cansado de tédio
ergamos no espaço!
É esse o remédio.
Depois de cerzidas,
não ficam marcadas
profundas feridas
em teias rasgadas!
In "Poemas Vários (1950-1975) "
Isabel Gouveia **
(N.1930)
** Nome literário de Isabel Pereira Mendes
UM DIA ESCREVO À MINHA MÃE
um dia escrevo à minha mãe
o poema com a menina
que ela gostaria de ter dado à luz.
há-de riscar-lhe os vestidos
e costurá-los…
com as mãos que só ela sabe
sentá-la no colo e coser-lhe as flores
dos versos
entre as madeixas dos cabelos
com as mãos que só ela sabe.
há-de fazer
crescer o pano do vestido
refazer as bainhas sempre que preciso
e o sorrir dos botões
pelo ventre das casas
com as mãos que só ela sabe.
um dia escrevo à minha mãe
o poema com a menina
que ela gostaria de ter dado à luz.
In “Dista um palmo, a amplitude do peso que suportas”
Hélder Magalhães
(N.1982)
MEADOS DE MAIO
Chuvoso maio!
Deste lado oiço gotejar
sobre as pedras.
Som da cidade ...
Do outro via a chuva no ar.
Perpendicular, fina,
Tomava cor,
distinguia-se
contra o fundo das trepadeiras
do jardim.
No chão, quando caía,
abria círculos
nas pocinhas brilhantes,
já formadas?
Há lá coisa mais linda
que este bater de água
na outra água?
Um pingo cai
E forma uma rosa...
um movimento circular,
que se espraia.
Vem outro pingo
E nasce outra rosa...
e sempre assim!
Os nossos olhos desconsolados,
sem alegria nem tristeza,
tranquilamente
vão vendo formar-se as rosas,
brilhar
e mover-se a água...
In “Poesia - I”
Editorial Presença
Irene Lisboa
(1892-1958)
REGRESSO
Em cada canto revejo a minha infância...
outras rosas iguais a estas rosas,
nenhuma tinha o perfume da lembrança
que estas rosas têm,
estas rosas colhidas no jardim distante
- os ponteiros parados do relógio da torre
que hora marcam?
Passou o tempo
ou é o emigrante que volta quem mudou?
Tudo me sabe ainda ao que deixei,
ou quero que me saiba porque sei
a recordação do que era?...
Em cada canto me encontro como fui
- como sou, estrangeiro na minha casa,
ninguém, nem eu, me reconhece agora.
In “Líricas Portuguesas” - I Volume
Selecção, Prefácios e apresentação de Jorge de Sena
Edições 70 -1984
Joaquim Namorado
(1914-1986)
AMARELO QUEBRADO
As casas ganham um ar mais mortal
na tristeza depois de não ter havido coito.
Vão depressa as nuvens, tão depressa, levam pombos
e telhados agudos com ardósia quebram
em radiações de treva na água aprisionada.
Já tínhamos falado de tudo na véspera,
do adiamento, da sufocação,
mas senti que não seria assim.
Com a garganta ao contrário da Holanda,
seca, incapaz de falar.
Vi os gráficos do sangue empresarial.
Na floração das vendas, o risco suspendia
câmbios de gasolina sobre mim.
Ao som do telefax, um visor de números
era agora o teu rosto.
Por cima do casaco hesitavam as mãos
de novo perdidas no medo de prender-se
ao metal tecido de milagre da saliva.
Eram mãos que não sabiam pousar.
A experiência agora é esta: chamar desamor
à emoção que não entende o que deseja,
confunde os sentimentos numa aridez tão pesada
que nem eu percebo como deixa voar um avião
por este sem fim de céu que traz o fim.
Mas foi horas antes que findou.
Ia a noite avançando, escurecia o hotel
e as mãos ficaram presas. Tanto tempo,
tanto tempo nenhum.
In “As Escadas Não Têm Degraus”
Edição de Livros Cotovia
Joaquim Manuel Magalhães
(N.1945)
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