DEITANDO UM CAVALO À MARGEM
Vai, mísero cavalo lazarento,
Pastar longas campinas livremente;
Não percas tempo, enquanto to consente
De magros cães faminto ajuntamento.
Esta sela, teu único ornamento,
Para sinal da minha dor veemente,
De torto prego ficará pendente,
Despojo inútil do inconstante vento.
Morre em paz, que, em havendo algum dinheiro,
Hei-de mandar, em honra de teu nome,
Abrir em negra pedra este letreiro:
«Aqui piedoso entulho os ossos come
Do mais fiel, mais rápido sendeiro,
Que fora eterno, a não morrer de fome».
In “Obras Completas”
Castro, Irmão& Cª - 1861
Nicolau Tolentino de Almeida
(1722-1804)
VIVO NA ESPERANÇA DE UM GESTO
Vivo na esperança de um gesto
Que hás-de fazer.
Gesto, claro, é maneira de dizer,
Pois o que importa é o resto
Que esse gesto tem de ter.
Tem que ter sinceridade
Sem parecer premeditado;
E tem que ser convincente,
Mas de maneira diferente
Do discurso preparado.
Sem me alargar, não resisto
À tentação de dizer
Que o gesto não é só isto...
Quando tu, em confusão,
Sabendo que estou à espera,
Me mostras que só hesitas
Por não saber começar,
Que tentações de falar!
Porque enfim, como adivinhas,
Esse gesto eu sei qual é,
Mas se o disser, já não é...
(Livro I – Um voo cego a nada)
In “Poemas”
Editora Nova Veja
Reinaldo Ferreira
(1922-1959)
SEM LIVRO DE RECLAMAÇÕES
No princípio era o verbo
e agora ninguém responde.
O marido, a amante, a família e os amigos,
todos alinhados sobre as campas.
Começam pela oração ou o correspondente laico
e logo passam às súplicas e aos subornos.
Os cemitérios são repartições públicas.
Por isso não há respostas.
Há noites mal dormidas pelas razões erradas.
Esta noite a cama tremeu três vezes. Os teus balbucios
na minha boca. A tua pele húmida. Sou o teu epitáfio?
A família e os demais continuam a acorrer aos balcões
sem os formulários preenchidos.
Os mortos já não pertencem às respostas.
Qualquer adjectivo apodrece como as flores.
Qualquer frase se decompõe sem sujeito.
Sou apenas uma tatuagem na tua campa.
No princípio era o fim.
In “Gado do Senhor”
Editora &Etc - 2011
Rosa Alice Branco
(N.1950)
CHUVA
Chove como sempre. E,
sempre que chove,
as pessoas abrigam-se
(as que não estavam à
espera que chovesse);
ou abrem, simplesmente,
o chapéu-de-chuva - de
preferência com fecho
automático. Porque, quando
chove, todos temos de
fazer alguma coisa: até
nós, que estamos dentro
de casa. Vão, uns, até
à janela, comentando:
“Que Inverno!”; sentam-se,
outros, com um papel
à frente: e escrevem
um poema, como este.
In “Um Canto na Espessura do Tempo” 1992
Quetzal Editores
Nuno Júdice
(N.1949)
CONHEÇO ESSE SENTIMENTO
Conheço esse sentimento
que é como a cerejeira
quando está carregada de frutos:
excessivo peso para os ramos da alma.
Conheço esse sentimento
que é o da orla da praia
lambida pela espuma da maré:
quando o mar se retira
as conchas são pequenas saudades
que doem no coração da areia.
Conheço esse sentimento
que é o dos cabelos do salgueiro
revoltos pelas mãos ágeis da tempestade:
na hora quieta do amanhecer
pendem-lhe tristemente os braços
vazios do amado corpo do vento.
Conheço esse sentimento
que passa nos teus olhos e nos meus
quando de mãos dadas
ouvimos o Requiem de Mozart
ou visitamos a nave de Alcobaça.
Pedro e Inês
a praia e a maré
o salgueiro e o vento
a verdade e o sonho
o amor e a morte
o pó das cerejeiras
tu.
e eu.
In “Poemas escolhidos e dispersos”
Roma Editora
Rosa Lobato de Faria
(1932-2010)
FUNDO DO MAR
No fundo do mar há brancos pavores,
Onde as plantas são animais
E os animais são flores.
Mundo silencioso que não atinge
A agitação das ondas.
Abrem-se rindo conchas redondas,
Baloiça o cavalo-marinho.
Um polvo avança
No desalinho
Dos seus mil braços,
Uma flor dança,
Sem ruído vibram os espaços.
Sobre a areia o tempo poisa
Leve como um lenço.
Mas por mais bela que seja cada coisa
Tem um monstro em si suspenso.
In “Obra Poética I”
Editorial Caminho
Sophia de Mello Breyner Andresen
(1919-2004)
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