DESCALÇA DE VIVER
Descalça de viver, anda sempre.
Enchia a rua quando não passava.
Mas, se passava, desfazia o tempo
e apagava a rua, os homens e as lágrimas.
Nem ela própria já vivia dentro
de si. A roupa que levava
tinha uma cor de triste e pensamento
que não se sente e não se vê. E nada
dela se via que não fosse um vento.
Nem um silvo ou perfume a denunciava.
Sabia-se, de certo, que vivia
porque o dia, a certas horas se quedava
pronto, parado, como não sendo dia.
Ela, descalça de viver, passava...
In "Sobre as Horas"
Moraes Editores
Fernando Echevarría
(1929-2021)
NÓS, OS ATEUS, NÓS, OS MONOTEÍSTAS
Nós, os ateus, nós, os monoteístas,
Nós, os que reduzimos a beleza
A pequenas tarefas, nós, os pobres
Adornados, os pobres confortáveis,
Os que a si mesmos se vigarizavam
Olhando para cima, para as torres,
Supondo que as podiam habitar,
Glória das águias que nem águias tem,
Sofremos, sim, de idêntica indigência,
Da ruína da Grécia.
Poema 7.
In “A Terceira Miséria”
Relógio d’Água - 2012
Hélia Correia
(N.1949)
POEMA DE AMOR
A noite é cheia de vales e baías.
E do meu peito aberto um rio largo de sangue...
Águas densas, de correntes lentas,
serpentes mortas a arrastarem-se.
Águas?
Águas negras, pastosas, alcatrão rolante.
Mas águas puras, verde-claras, atraindo
a margem donde os crocodilos fogem mastigando.
Águas em transparências lucilantes, para cima,
e as estrelas do mar, um polvo e um mefistófeles
ficam no ar sobre ilhéus e lodosos calhaus
que se descobrem.
Plantas brancas e extáticas...
Lágrimas... nuvens... e a cabeça, o perfil,
os olhos, todo o corpo da mulher amada, a prostituta
antes de virgem, que é bela e feia, velha e nova,
e não conhece os filhos!
O fogo envolve essa mulher amada
e é um guindaste erguendo-a e atirando-a,
enquanto dispersas pelo chão brilham mandíbulas
naturalmente à espera...
In “Poemas Surdos'”
Assírio & Alvim
Edmundo Bettencourt
(1889-1973)
A MÃE
Eu canto-vos, mulher, por que vos tenho visto
Na palpebra vermelha a lagrima d'amôr,
Que vem d'Eva a Maria — a doce mãe de Christo—
Formando a stalactite immensa d'uma dôr!
Oh, quantas vezes já n'aldeia miseravel
Nas tristezas do campo, ás portas dos casaes,
Vos tenho surprehendido, em extasi adoravel,
Em quanto os filhos nús ao peito conchegaes!
A fria noite chega. Os maus, de bocca cheia,
Rebolam-se na terra: ainda pedem pão!
Com elles repartis a vossa parca ceia;
E vendo-os a dormir podeis sorrir então.
D'inverno quasi sempre as noites são mordentes.
Uivam lobos na serra: o vento uiva tambem:
Mas elles vão dormindo os longos somnos quentes,
Em quanto a vil insomnia opprime a pobre mãe!
Tendes sustos crueis. Temendo que lhes caia
A roupa que os abafa, aos pobres acudis;
E aninhando-os melhor nas vossas velhas saias
Podeis então dormir um tanto mais feliz.
Mulher quanto é suave e longo esse poema
Quanto é preciso ó mãe, no transito cruel,
Que vossa alma estremeça e o vosso peito gema
A fim de que em vós brilhe o mais alto laurel!
Quem é que nunca viu, na rua, a cada passo,
A pallida mulher que rompe a multidão,
Trazendo agasalhado, um filho no regaço,
E aos tombos, muita vez, um outro pela mão?!
Nos frios do lagedo, ás vezes, pede esmola
Ás portas dos cafés: ninguem a quer ouvir:
E a ella qualquer codea a farta e a consola
Comtanto que sem fome os filhos vão dormir!
E em quanto á luz do gaz a turba prazenteira
No fumo dos festins revoa em turbilhão,
Quantos dramas crueis nas humidas trapeiras;
Nos campos quantas mães sem roupas e sem pão?!
E sempre a mesma lenda, a mesma historia antiga:
Do palacio á cabana o vosso doce olhar,
Nas insomnias crueis, na fome ou na fadiga,
D'um raio creador o berço a illuminar!
No entanto á doce mãe, se aquelle amor sem termo,
Da moda traja agora os novos ouropeis,
E o vosso coração já gasto e um pouco enfermo,
Soffrendo se dilue nos ideaes crueis;
Nas vagas pulsações d'umas recentes ancias,
Se aquella santa flôr das grandes commoções,
Apenas tem logar nas vossas elegancias.
Como um enfeite de mimo amado nos salões;
Na corrente fatal que ao longe arrasta os povos,
Se o vosso grande affecto intenta erguer-se mais,
Sonhando a sagração dos heroismos novos,
Resplendente de luz; vistosa de metaes:
Aos reflexos do gaz, ó mãe, abri passagem
Por entre a saudação das alas cortezãs,
Levando as seducções da vossa doce imagem
Aos delirios da noite, ás ceias das manhãs!
Surgi do canto obscuro aonde o casto seio
Palpita ingenuo e bom na paz da solidão,
E o vosso amor levae á opera e ao passeio
A fim de que elle arranque um bravo á multidão!
E eu heide rir ao ver que o peito onde um thesouro
Maior do que nenhum podemos encontrar,
Intenta seduzir pela medalha d'ouro
Que aos pequenos heroes os reis costumam dar!
(mantém a grafia original)
In “A Alma Nova”
INCM - Imprensa Nacional Casa da Moeda
Guilherme de Azevedo
(1839-1882)
ESTA DOR QUE ME FAZ BEM
As coisas falam comigo
uma linguagem secreta
que é minha, de mais ninguém.
Quem sente este cheiro antigo,
o cheiro da mala preta,
que era tua, minha mãe?
Este cheiro de além-vida
e de indizível tristeza,
do tempo morto, esquecido...
Tão desbotada e puída
aquela fita escocesa
que enfeitava o teu vestido.
Fala comigo e conversa,
na linguagem que eu entendo,
a tua velha gaveta,
a vida nela dispersa
chega à cama onde me estendo
num perfume de violeta.
Vejo as tuas jóias falsas
que usavas todos os dias,
do princípio ao fim do ano,
e ainda oiço as tuas valsas,
minha mãe, e as melodias
que cantavas ao piano.
Vejo brancos, decotados,
os teus sapatos de baile,
um broche em forma de lira,
saia aos folhos engomados
e sobre o vestido um xaile,
um xaile de Caxemira.
Quantas voltas deu na vida
este álbum de retratos,
de veludo cor de tília?
Gente outrora conhecida,
quem lhe deu tantos maus tratos?
Serão todos da família?
Ai, vou fechar na gaveta
a lembrança dolorosa
dos teus laços de cetim,
dos teus ramos de violeta,
do leque de seda rosa
com varetas de marfim.
As coisas falam comigo
numa linguagem secreta,
que é minha, de mais ninguém.
Quero esquecer, não consigo.
Vou guardar na mala preta
esta dor que me faz bem.
In “E Eu, Saudosa, Saudosa”
Fernanda de Castro
(1900-1994)
ENCOSTAS A FACE À MELANCOLIA
Encostas a face à melancolia e nem sequer
ouves o rouxinol. Ou é a cotovia?
Suportas mal o ar, dividido
entre a fidelidade que deves
à terra de tua mãe e ao quase branco
azul onde a ave se perde.
A música, chamemos-lhe assim,
foi sempre a tua ferida, mas também
foi sobre as dunas a exaltação.
Não ouças o rouxinol. Ou a cotovia.
É dentro de ti
que toda a música é ave.
In "Branco no Branco" 1984
Eugénio de Andrade **
(1923-2005)
** Pseudónimo de José Fontinhas
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