Sexta-feira, 31 de Março de 2023

Recordando... Maria Natália Teotónio Pereira

UM ACORDAR, VIOLENTO E DURO

 

Um acordar, violento e duro,

qualquer coisa desesperada

– mesmo que seja preciso saltar o muro –

que nos arranque da sempre mesma morna estrada

para encontrar um outro caminho mais seguro.

 

(Não podemos dizer a ninguém

o de repente desejo de infinito que nos vem.

Porque logo se vai

acompanhado o breve momento que o atrai).

 

Que realizarei

qualquer força interior.

Mas terei de dar

o que não dei

seja a quem fôr.

No procurar

do sítio exacto onde me pôr.

 

In “Mão Aberta”

Edição de autor

 

Maria Natália Teotónio Pereira

(1930-1971)

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Sábado, 25 de Março de 2023

Recordando... Paula Raposo

TANGENTE

 

É na tangência

do infinito

que nos podemos tocar,

trazendo no corpo

todas as fantasias

memorizadas;

como se de

 

um plano

marcado a ferros,

libertássemos

a adrenalina

dos conceitos.

 

In “Por ti com os meus olhos”

Chiado Editora

 

Paula Raposo

(N.1954)

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Domingo, 19 de Março de 2023

Recordando... Miguel Almeida

VIAGEM À VOLTA DE MIM

 

Numa procura de quem se busca, fiz de mim mesmo uma nau

E embarquei, na viagem.

Desfraldadas aos ventos, ofereci as velas ao Norte e ao Sul

Ao Este e ao Oeste, entreguei ao não sabido o meu eu.

Embarquei, naveguei e deixei-me ir.

 

Vi cidades onde estive, mas não gostei

Vivi nelas, paredes meias com a dor

Em rostos, que não quis conhecer

E de quem, na verdade

Quis fugir.

 

Caras tristes, com marcas tristes

Visíveis, como casas sem inquilinos.

 

Suspensão de mim a meu ser,

Distância (in) finita,

Quis perder-me, para me achar

Quis procurar-me, para me encontrar.

 

Perdido, vagueei em busca de mim

Mas no fim, nau fundeada

Num cais, com velas ancoradas

Já gastas, procurei viver esta viagem.

 

In “Ser Como Tu”

Esfera do Caos

 

Miguel Almeida

(N.1970)

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Segunda-feira, 13 de Março de 2023

Recordando... Albano Martins

«CAMPO ABERTO»

DE SEBASTIÃO DA GAMA

 

Anda ontem eu falava de ti

serenamente

(a propósito:

não te esqueças <le responder

à minha última carta)

e agora

quero falar e não posso,

as palavras, húmidas, escorregam-me na garganta,

deixam-me na boca um sabor amargo.

Recebo a tua morte

como um golpe nas veias

à hora mais distraída,

quando o sol se define por uma linha perpendicular

e nós fazemos um ângulo raso com a vida.

Daí esta angústia,carnívora,

esta contracção súbita das raízes,

este horizonte curvado

de tanto reprimir as lágrimas.

Daí este evidente recuo idos meus passos

quando pretendo alcançar-te.

Mas tu prometeste que voltavas

e um Poeta cumpre sempre o que promete.

Entretanto sossega, meu amigo!:

o campo está definitivamente aberto

e as abelhas começam já

a carregar o pólen para os seus cortiços

e a perpetuar a essência dos teus versos.

Eu fico

com um manto de bruma sobre os ombros

esperando o teu regresso,

com a firme certeza

que só a amizade nos restitui os mortos.

 

7-2-52

 

In “ÁRVORE ”

Folhas de Poesia

Direcção e Edição de António Luís Moita, António Ramos Rosa,

José Terra, Luís Amaro, Raul de Carvalho

1.º Fascículo - Inverno de 1951-52

Pág. 91/92

 

Albano Martins

(1930-2018)

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Terça-feira, 7 de Março de 2023

Recordando... Pedro Homem de Mello

ÚLTIMAS VONTADES

Na branca praia, hoje deserta e fria,
De que se gosta mais do que de gente,
Na branca praia, onde te vi um dia
para sonhar, já tarde, eternamente,

Achei (ia jurá-lo!) à nossa espera,
Intacto o rasto dos antigos passos,
Aquela praia, inamovível, era
Espelho de pés leves, depois lassos!

E doravante, imploro, em testamento,
Que, nesta areia, a espuma seja a tiara
Do meu cadáver, preso ao teu e ao vento...

- Vaivém sexual, que o mar lega aos defuntos? - 
Se em vida, agora, tudo nos separa
Ó meu amor, apodreçamos juntos!

In "Ecce homo" – 1974

 

Pedro Homem de Mello

(1904-1984)

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Quarta-feira, 1 de Março de 2023

Recordando... Manuel Alegre

NÃO SEI DE AMOR SENÃO

 

Não sei de amor senão o amor perdido

o amor que só se tem de nunca o ter

procuro em cada corpo o nunca tido

e é esse que não pára de doer.

Não sei de amor senão o amor ferido

de tanto te encontrar e te perder.

 

Não sei de amor senão o não ter tido

teu corpo que não cesso de perder

nem de outro modo sei se tem sentido

este amor que só vive de não ter

o teu corpo que é meu porque perdido

não sei de amor senão esse doer.

 

Não sei de amor senão esse perder

teu corpo tão sem ti e nunca tido

para sempre só meu de nunca o ter

teu corpo que me dói no corpo ferido

onde nunca deixou nunca de doer

não sei de amor senão o amor perdido.

 

Não sei de amor senão o sem sentido

deste amor que não morre por morrer

o teu corpo tão nu nunca despido

o teu corpo tão vivo de o perder

neste amor que só é de não ter sido

não sei de amor senão esse não ter.

 

Não sei de amor senão o não haver

amor que dure mais do que o nunca tido.

Há um corpo que não para de doer

só esse é que não morre de tão perdido

só esse é sempre meu de nunca o ser

não sei de amor senão o amor ferido.

 

Não sei de amor senão o tempo ido

em que amor era amor de puro arder

tudo passa mas não o não ter tido

o teu corpo de ser e de não ser

só esse meu por nunca ter ardido

não sei de amor senão esse perder.

 

Cintilante na noite um corpo ferido

só nele de o não ter tido eu hei-de arder

não sei de amor senão amor perdido.

 

In “Livro Do Português Errante”

Publicações Dom Quixote

 

Manuel Alegre

(N.1936)

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