UM ACORDAR, VIOLENTO E DURO
Um acordar, violento e duro,
qualquer coisa desesperada
– mesmo que seja preciso saltar o muro –
que nos arranque da sempre mesma morna estrada
para encontrar um outro caminho mais seguro.
(Não podemos dizer a ninguém
o de repente desejo de infinito que nos vem.
Porque logo se vai
acompanhado o breve momento que o atrai).
Que realizarei
qualquer força interior.
Mas terei de dar
o que não dei
seja a quem fôr.
No procurar
do sítio exacto onde me pôr.
In “Mão Aberta”
Edição de autor
Maria Natália Teotónio Pereira
(1930-1971)
TANGENTE
É na tangência
do infinito
que nos podemos tocar,
trazendo no corpo
todas as fantasias
memorizadas;
como se de
um plano
marcado a ferros,
libertássemos
a adrenalina
dos conceitos.
In “Por ti com os meus olhos”
Chiado Editora
Paula Raposo
(N.1954)
VIAGEM À VOLTA DE MIM
Numa procura de quem se busca, fiz de mim mesmo uma nau
E embarquei, na viagem.
Desfraldadas aos ventos, ofereci as velas ao Norte e ao Sul
Ao Este e ao Oeste, entreguei ao não sabido o meu eu.
Embarquei, naveguei e deixei-me ir.
Vi cidades onde estive, mas não gostei
Vivi nelas, paredes meias com a dor
Em rostos, que não quis conhecer
E de quem, na verdade
Quis fugir.
Caras tristes, com marcas tristes
Visíveis, como casas sem inquilinos.
Suspensão de mim a meu ser,
Distância (in) finita,
Quis perder-me, para me achar
Quis procurar-me, para me encontrar.
Perdido, vagueei em busca de mim
Mas no fim, nau fundeada
Num cais, com velas ancoradas
Já gastas, procurei viver esta viagem.
In “Ser Como Tu”
Esfera do Caos
Miguel Almeida
(N.1970)
«CAMPO ABERTO»
DE SEBASTIÃO DA GAMA
Anda ontem eu falava de ti
serenamente
(a propósito:
não te esqueças <le responder
à minha última carta)
e agora
quero falar e não posso,
as palavras, húmidas, escorregam-me na garganta,
deixam-me na boca um sabor amargo.
Recebo a tua morte
como um golpe nas veias
à hora mais distraída,
quando o sol se define por uma linha perpendicular
e nós fazemos um ângulo raso com a vida.
Daí esta angústia,carnívora,
esta contracção súbita das raízes,
este horizonte curvado
de tanto reprimir as lágrimas.
Daí este evidente recuo idos meus passos
quando pretendo alcançar-te.
Mas tu prometeste que voltavas
e um Poeta cumpre sempre o que promete.
Entretanto sossega, meu amigo!:
o campo está definitivamente aberto
e as abelhas começam já
a carregar o pólen para os seus cortiços
e a perpetuar a essência dos teus versos.
Eu fico
com um manto de bruma sobre os ombros
esperando o teu regresso,
com a firme certeza
que só a amizade nos restitui os mortos.
7-2-52
In “ÁRVORE ”
Folhas de Poesia
Direcção e Edição de António Luís Moita, António Ramos Rosa,
José Terra, Luís Amaro, Raul de Carvalho
1.º Fascículo - Inverno de 1951-52
Pág. 91/92
Albano Martins
(1930-2018)
ÚLTIMAS VONTADES
Na branca praia, hoje deserta e fria,
De que se gosta mais do que de gente,
Na branca praia, onde te vi um dia
para sonhar, já tarde, eternamente,
Achei (ia jurá-lo!) à nossa espera,
Intacto o rasto dos antigos passos,
Aquela praia, inamovível, era
Espelho de pés leves, depois lassos!
E doravante, imploro, em testamento,
Que, nesta areia, a espuma seja a tiara
Do meu cadáver, preso ao teu e ao vento...
- Vaivém sexual, que o mar lega aos defuntos? -
Se em vida, agora, tudo nos separa
Ó meu amor, apodreçamos juntos!
In "Ecce homo" – 1974
Pedro Homem de Mello
(1904-1984)
NÃO SEI DE AMOR SENÃO
Não sei de amor senão o amor perdido
o amor que só se tem de nunca o ter
procuro em cada corpo o nunca tido
e é esse que não pára de doer.
Não sei de amor senão o amor ferido
de tanto te encontrar e te perder.
Não sei de amor senão o não ter tido
teu corpo que não cesso de perder
nem de outro modo sei se tem sentido
este amor que só vive de não ter
o teu corpo que é meu porque perdido
não sei de amor senão esse doer.
Não sei de amor senão esse perder
teu corpo tão sem ti e nunca tido
para sempre só meu de nunca o ter
teu corpo que me dói no corpo ferido
onde nunca deixou nunca de doer
não sei de amor senão o amor perdido.
Não sei de amor senão o sem sentido
deste amor que não morre por morrer
o teu corpo tão nu nunca despido
o teu corpo tão vivo de o perder
neste amor que só é de não ter sido
não sei de amor senão esse não ter.
Não sei de amor senão o não haver
amor que dure mais do que o nunca tido.
Há um corpo que não para de doer
só esse é que não morre de tão perdido
só esse é sempre meu de nunca o ser
não sei de amor senão o amor ferido.
Não sei de amor senão o tempo ido
em que amor era amor de puro arder
tudo passa mas não o não ter tido
o teu corpo de ser e de não ser
só esse meu por nunca ter ardido
não sei de amor senão esse perder.
Cintilante na noite um corpo ferido
só nele de o não ter tido eu hei-de arder
não sei de amor senão amor perdido.
In “Livro Do Português Errante”
Publicações Dom Quixote
Manuel Alegre
(N.1936)
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