AQUELA CATIVA
Aquela cativa
que me tem cativo,
porque nela vivo
já não quer que viva.
Eu nunca vi rosa
em suaves molhos,
que pera meus olhos
fosse mais fermosa.
Nem no campo flores,
nem no céu estrelas
me parecem belas
como os meus amores.
Rosto singular,
olhos sossegados,
pretos e cansados,
mas não de matar.
Uma graça viva,
que neles lhe mora,
pera ser senhora
de quem é cativa.
Pretos os cabelos,
onde o povo vão
perde opinião
que os louros são belos.
Pretidão de Amor,
tão doce a figura,
que a neve lhe jura
que trocara a cor.
Leda mansidão,
que o siso acompanha;
bem parece estranha,
mas bárbara não.
Presença serena
que a tormenta amansa;
nela, enfim, descansa
toda a minha pena.
Esta é a cativa
que me tem cativo.
E pois nela vivo,
é força que viva.
In “Lírica completa” Vol.1
Prefácio e notas de Maria de Lurdes Saraiva.
INCM - Imprensa Nacional/Casa da Moeda - 1980
Luís Vaz de Camões
(1524-1580)
ARTÉRIA, TU TENS RAZÃO
A única coisa que eu aprendi meu Deus
a sofrer a desilusão duma passagem de rua
ficar com o lado esquerdo a ajudar a falar
mas a única coisa que eu aprendi
Que um bocado de vidro inundasse de luz uma artéria
eu era um bocado de vidro que não inundasse de luz
artéria nenhuma
era uma desilusão a olhar para mim
e dizer movimento de rua
é assim movimento de rua
aí está nós cá estamos nós somos tal e qual
uma desilusão em passagem.
Tinha era ainda mais que tudo isso
um inchaço dum vidro em bocado
espetado em cima de pedra.
Havia um estendal de desilusão a devorar-me
todo com os olhos
eu era uma continuação do meu ser.
Onde um simulacro estava a vantagem
de uma desilusão.
Eu não
eu cá.
Que um cá estamos considerasse ou não
eu não tinha nada com isso
Eu fum, eu...
Ah,
Havia é que era eu cá estamos nada disso
eu cá não eu nada eu não tinha eu não tenho
tu quê
nós consideramos.
Onde punha fum
tudo por dentro era duma urania
tudo por dentro era duma constipação palpável
pelo sentido da pedra e do bocado de vidro.
Não eu cá não vou.
Quem olha descontenta.
In “O Ar da Manhã”
Assírio & Alvim
António Gancho
(1940-2006)
CONQUISTA
Quando é noite, e, na voz da Imensidade,
Um alto sonho em lágrimas crepita,
Tua graça de morte me visita,
Teu olhar é um sorriso de saudade...
E a tua Ausência intimamente invade
Meu coração que morto inda palpita;
E a lágrima que eu sangro se ilimita,
Reflecte em sua dor a eternidade!
Vens de Além; são de sombras teus vestidos;
Tua noite de morte me ilumina,
Confundimos em êxtase os sentidos...
Um canto ri na cruz da nossa dor;
Canto onde brilha uma oração divina,
Morre o Desejo e principia o Amor!
In “Antologia Poética”
Mário Beirão
(1890-1965)
O SÍTIO EM VISTA
Trazem as árvores insignificantes
o maior distúrbio aos ventos; arredam-nos,
alçam outros armazéns sonoros
casas de relâmpagos e de cataclismos.
Chega-se. Parte-se. Segreda-se
de seres indeterminados que movem
resistência. Pelejam mais.
E quando a sua pele se usa vence
a moda, mudança de uma árvore para a mundanal
outra árvore carregada.
Podem aliás irromper quentes florestas.
Abate-se sobre o lenhador a opulência, o triunfo
do fruto desenvolvido no seu trono
iluminado por quatro archotes de seiva.
Há no mundo inteiro uma, quando muito, rua
difícil de encontrar.
São os campos, gente humílima, absorta em grãos
de areia, praia inequívoca onde,
na estação tardia, os do mar se deitam.
Algumas folhas, de livros, assinalam o ponto.
Algumas cartas, de marear,
não chegam.
Criaturas que se reproduziam em interstícios
que se deitavam em divãs
cada vez mais estreitos
a luminosa vocação, a luminosidade
de uma terra sábia e rotunda
suplantava aqueles gritos portadores
de uma defunta órfica voz
Eram as criaturas presas,
do seu século
retraídas nos olhos mal afeiçoados
Filhos mais velhos a atentarem
em como o corpo incha e se perfaz a polpa
como o limite se delimita corpo a corpo
e engorda
Cobriam-se as folhas de uma letra hirsuta
e os mais novos sorriam como lábios.
(Os Sítios Sitiados)
In “Poesia”
Organização e prefácio de Fernando Cabral Martins
Assírio & Alvim 2ª edição
Luiza Neto Jorge
(1939-1989)
EM TODAS AS RUAS TE ENCONTRO
Em todas as ruas te encontro
em todas as ruas te perco
conheço tão bem o teu corpo
sonhei tanto a tua figura
que é de olhos fechados que eu ando
a limitar a tua altura
e bebo a água e sorvo o ar
que te atravessou a cintura
tanto tão perto tão real
que o meu corpo se transfigura
e toca o seu próprio elemento
num corpo que já não é seu
num rio que desapareceu
onde um braço teu me procura
Em todas as ruas te encontro
em todas as ruas te perco
In "Pena Capital"
Assírio & Alvim - 2004
Mário Cesariny
(1923-2006)
. Mais poesia em
. Eu li...
. Recordando... Branquinho ...
. Recordando... Carlos Ramo...
. Recordando... António Pin...
. Recordando... Sidónio Mur...
. Recordando... Margarida V...
. Recordando... Maria Velho...
. Recordando... Maria Irene...