Sábado, 25 de Fevereiro de 2023

Recordando... Luís Vaz de Camões

AQUELA CATIVA

 

Aquela cativa

que me tem cativo,

porque nela vivo

já não quer que viva.

Eu nunca vi rosa

em suaves molhos,

que pera meus olhos

fosse mais fermosa.

 

Nem no campo flores,

nem no céu estrelas

me parecem belas

como os meus amores.

Rosto singular,

olhos sossegados,

pretos e cansados,

mas não de matar.

 

Uma graça viva,

que neles lhe mora,

pera ser senhora

de quem é cativa.

Pretos os cabelos,

onde o povo vão

perde opinião

que os louros são belos.

 

Pretidão de Amor,

tão doce a figura,

que a neve lhe jura

que trocara a cor.

Leda mansidão,

que o siso acompanha;

bem parece estranha,

mas bárbara não.

 

Presença serena

que a tormenta amansa;

nela, enfim, descansa

toda a minha pena.

Esta é a cativa

que me tem cativo.

E pois nela vivo,

é força que viva.

 

In “Lírica completa” Vol.1

Prefácio e notas de Maria de Lurdes Saraiva.

INCM - Imprensa Nacional/Casa da Moeda - 1980

 

Luís Vaz de Camões

(1524-1580)

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Domingo, 19 de Fevereiro de 2023

Recordando... António Gancho

ARTÉRIA, TU TENS RAZÃO

 

A única coisa que eu aprendi meu Deus

a sofrer a desilusão duma passagem de rua

ficar com o lado esquerdo a ajudar a falar

mas a única coisa que eu aprendi

 

Que um bocado de vidro inundasse de luz uma artéria

eu era um bocado de vidro que não inundasse de luz

artéria nenhuma

era uma desilusão a olhar para mim

e dizer movimento de rua

é assim movimento de rua

aí está nós cá estamos nós somos tal e qual

uma desilusão em passagem.

 

Tinha era ainda mais que tudo isso

um inchaço dum vidro em bocado

espetado em cima de pedra.

 

Havia um estendal de desilusão a devorar-me

todo com os olhos

eu era uma continuação do meu ser.

Onde um simulacro estava a vantagem

de uma desilusão.

Eu não

eu cá.

Que um cá estamos considerasse ou não

eu não tinha nada com isso

 

Eu fum, eu...

Ah,

Havia é que era eu cá estamos nada disso

eu cá não eu nada eu não tinha eu não tenho

tu quê

nós consideramos.

Onde punha fum

tudo por dentro era duma urania

tudo por dentro era duma constipação palpável

pelo sentido da pedra e do bocado de vidro.

Não eu cá não vou.

 

Quem olha descontenta.

 

In “O Ar da Manhã”

Assírio & Alvim

 

António Gancho

(1940-2006)

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Segunda-feira, 13 de Fevereiro de 2023

Recordando... Mário Beirão

CONQUISTA

 

Quando é noite, e, na voz da Imensidade,

Um alto sonho em lágrimas crepita,

Tua graça de morte me visita,

Teu olhar é um sorriso de saudade...

 

E a tua Ausência intimamente invade

Meu coração que morto inda palpita;

E a lágrima que eu sangro se ilimita,

Reflecte em sua dor a eternidade!

 

Vens de Além; são de sombras teus vestidos;

Tua noite de morte me ilumina,

Confundimos em êxtase os sentidos...

 

Um canto ri na cruz da nossa dor;

Canto onde brilha uma oração divina,

Morre o Desejo e principia o Amor!

 

In “Antologia Poética”

 

Mário Beirão

(1890-1965)

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Terça-feira, 7 de Fevereiro de 2023

Recordando... Luiza Neto Jorge

O SÍTIO EM VISTA

 

Trazem as árvores insignificantes

o maior distúrbio aos ventos; arredam-nos,

alçam outros armazéns sonoros

casas de relâmpagos e de cataclismos.

 

Chega-se. Parte-se. Segreda-se

de seres indeterminados que movem

resistência. Pelejam mais.

 

E quando a sua pele se usa vence

a moda, mudança de uma árvore para a mundanal

outra árvore carregada.

 

Podem aliás irromper quentes florestas.

Abate-se sobre o lenhador a opulência, o triunfo

do fruto desenvolvido no seu trono

iluminado por quatro archotes de seiva.

 

Há no mundo inteiro uma, quando muito, rua

difícil de encontrar.

 

São os campos, gente humílima, absorta em grãos

de areia, praia inequívoca onde,

na estação tardia, os do mar se deitam.

Algumas folhas, de livros, assinalam o ponto.

Algumas cartas, de marear,

não chegam.

 

Criaturas que se reproduziam em interstícios

que se deitavam em divãs

cada vez mais estreitos

 

a luminosa vocação, a luminosidade

de uma terra sábia e rotunda

suplantava aqueles gritos portadores

de uma defunta órfica voz

 

Eram as criaturas presas,

do seu século

retraídas nos olhos mal afeiçoados

 

Filhos mais velhos a atentarem

em como o corpo incha e se perfaz a polpa

como o limite se delimita corpo a corpo

e engorda

 

Cobriam-se as folhas de uma letra hirsuta

e os mais novos sorriam como lábios.

 

(Os Sítios Sitiados)

 

In “Poesia”

Organização e prefácio de Fernando Cabral Martins

Assírio & Alvim 2ª edição

 

Luiza Neto Jorge

(1939-1989)

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Quarta-feira, 1 de Fevereiro de 2023

Recordando... Mário Cesariny

EM TODAS AS RUAS TE ENCONTRO

 

Em todas as ruas te encontro

em todas as ruas te perco

conheço tão bem o teu corpo

sonhei tanto a tua figura

que é de olhos fechados que eu ando

a limitar a tua altura

e bebo a água e sorvo o ar

que te atravessou a cintura

tanto tão perto tão real

que o meu corpo se transfigura

e toca o seu próprio elemento

num corpo que já não é seu

num rio que desapareceu

onde um braço teu me procura

 

Em todas as ruas te encontro

em todas as ruas te perco

 

In "Pena Capital"

Assírio & Alvim - 2004

 

Mário Cesariny

(1923-2006)

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