UM SEGREDO
Meu pai tinha sandálias de vento
só agora o sei.
Tinha sandálias de vento
e isto nem sequer é uma maneira de dizer
andava por longe os olhos fugidos a expressão em
[nenhures
com as miraculosas instantaneidades que nos fazem
[estar em todos os sítios.
Andava por longe meu pai sonhando errando vadiando
mas toda a sua ausência era
o malogro de o ser
só agora o sei.
Andava por longe ou sentíamo-lo longe
vem dar no mesmo
e no entanto víamo-lo sempre
ali plantado de imobilidade absorta
no cepo de carvalho raiado de negro
a que o caruncho comera o miolo
como as lagartas esvaziam as maçãs
estranhamente quieto murcho resignado
no seu estranho vadiar
os olhos aguados numa tristeza que hoje me dói
como um apelo perdido uma coragem abortada.
Ausência era tão de mágoa urdida tão de fracasso
[tingida
ausência era
altiva e desolada altiva e triste sobretudo triste
tristeza sim tristeza solene e irremediada
só agora o sei.
Às vezes parecia-me uma águia que atravessa os ares
sulco azul
que nada distingue do azul onde foi sulcado
e por isso nem é águia nem ao menos
o que do seu voo resta para que
o sonho se faça real.
Meu pai era um homem com as nostalgias
do que nunca acontecera e isso minava-o víscera a
[víscera
como as tais lagartas esfarelam as maçãs
e então sei-o agora calçava as ágeis sandálias
miraculosamente leves soltas imaginosas
indo de acaso em acaso de astro em astro
eram de vento as suas sandálias fabulosas
levando-o aonde mais ninguém poderia chegar.
Os outros não o sabiam nem eu o sabia
só o víamos sentado no cepo velho
raiado de negro como uma estrela fossilizada
por isso tudo era para ele mais irremediável e triste
sei-o agora tarde de mais
tarde de mais é uma dor de remorso
que me consome víscera a víscera
como as tais lagartas esfarelam as maçãs.
Mas de qualquer maneira existe um segredo
de que ambos partilhamos
ciosamente avaramente indecifradamente
como os astutos conspiradores
que fazem do seu segredo
um mágico tesouro inviolado.
Um segredo simples:
o que sentiste pai
sinto-o eu agora por ambos
sinto-o por ti
sinto-o por mim.
Ainda que por ele devorados.
In “Nome Para Uma Casa”
Livraria Bertrand
Fernando Namora
(1919-1989)
NATAL
Na quadra do Natal
Neste nosso Portugal
Em todo o mundo também
É só amor e carinho
Ajuda-se o pobrezinho
Não se esquece ninguém
Para familiares e amigos
Os novos e os antigos
Dão-se prendas e presentes
Mas esquece-se em seguida
Continua a ser esquecida
As pessoas doentes
É assim em toda a terra
Fazem-se tréguas na guerra
Que acabam no outro dia
Volta o ódio e a vingança
Acabou-se a esperança
Terminou a alegria
Ó quanta hipocrisia
E alguma cobardia
No pensamento humano
Carinho e amor no Natal
Mas depois continua o mal
O resto de todo o ano
Amar como Jesus amou
Sonhar como ele sonhou
Ajudar o nosso irmão
Diga-mos não à guerra
Para que tenhamos paz na terra
Sem sacrifício nem opressão
O Natal deveria ser
E ninguém se esquecer
Todos os dias do ano
Para sempre nos amar
Toda a gente se respeitar
Nisto não há engano
In “União dos Escritores e Artistas
Transmontanos e Altodurienses – UNEARTA”
Revista mensal - N.º 13 - Ano 2 - Janeiro 2003
Norberto Martins
(Poeta popular)
SERÁ QUE PERCEBE
Será que percebe, então,
o sopro leve
que passa breve
a rondar p'la escuridão?
Por si roçando
de quando em quando
como carícia de mão;
depois, baixinho,
grave, mansinho,
num múrmurio modulado
e segredante
de voz distante
de algo fluído, alado,
nunca visível,
só perceptível
e presente em todo o lado
como louco vagabundo,
ora dançando
ou sussurrando,
a girar livro p'lo mundo
In "Este Sol que me Aquece"
Armando Vieira de Barros
(N.1929)
O PRAZER E O DESGOSTO
– Quem és tu, homem lindo e poderoso,
que a rir passas assim tão apressado,
deitando-me um olhar tão desdenhoso?
– Sou o prazer e vou p’ra outro lado!
– E tu homem descalço e esfarrapado,
que amargurado vens a caminhar.
Fitando-me amoroso e apaixonado?
– Sou o desgosto e venho p’ra o teu lar!
(Saudade)
In “Poetisas de Hoje”
Editora Empreza do Díarío de Notícias - 1931
Beatriz Arnut
(1892-1958)
AS PROSTITUTAS
Naquele tempo,
elas desciam à vila, as prostitutas –
a única saída,
exactíssima resposta para a nossa
angústia seminal acumulada.
Vinham de Vale da Porca, ou outra
terra assim pasmada.
Traziam na cabeça lenços garridos,
na carteira de mão a triste história:
a sedução primária, a miséria espessa,
mas jamais o vício mercenário.
Nas eiras recebiam as nossas águas,
de permeio plantados como reis.
Procuravam lisonjeiras acertar
seu êxtase fingido com o nosso.
Beijavam-nos, diziam: tão novinho!
Suportavam-nos insultos e arremessos.
Com a mão experiente (mas não habituada)
guiavam-nos na bela, impreterível,
urgente aprendizagem,
concediam-nos crédito e carinho –
as tão castas mulheres,
as prostitutas.
Algures a Nordeste (1974)
In “Artes Marginais”
Antologia poética
Guimarães Editores -1998
A.M. Pires Cabral
(N.1941)
MEDITAÇÃO SOBRE A ETERNIDADE
Das árvores que plantei
nenhuma já me pertence
e de quase todas nem comi´
ou sequer vi os frutos.
Sempre soube que devemos morrer
e penso que é melhor
não se saber quando nem como.
E quanto ao que deixámos
não se recorde de quem foi.
Que só assim somos eternos.
In “Poemas Ausentes”
Pedro da Silveira
(1922-2003)
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