Sábado, 31 de Dezembro de 2022

Recordando... Fernando Namora

UM SEGREDO

 

Meu pai tinha sandálias de vento

só agora o sei.

Tinha sandálias de vento

e isto nem sequer é uma maneira de dizer

andava por longe os olhos fugidos a expressão em

                                                 [nenhures

com as miraculosas instantaneidades que nos fazem

                                           [estar em todos os sítios.

 

Andava por longe meu pai sonhando errando vadiando

mas toda a sua ausência era

o malogro de o ser

só agora o sei.

Andava por longe ou sentíamo-lo longe

vem dar no mesmo

e no entanto víamo-lo sempre

ali plantado de imobilidade absorta

no cepo de carvalho raiado de negro

a que o caruncho comera o miolo

como as lagartas esvaziam as maçãs

estranhamente quieto murcho resignado

no seu estranho vadiar

os olhos aguados numa tristeza que hoje me dói

como um apelo perdido uma coragem abortada.

Ausência era tão de mágoa urdida tão de fracasso

                                                [tingida

ausência era

altiva e desolada altiva e triste sobretudo triste

tristeza sim tristeza solene e irremediada

só agora o sei.

 

Às vezes parecia-me uma águia que atravessa os ares

sulco azul

que nada distingue do azul onde foi sulcado

e por isso nem é águia nem ao menos

o que do seu voo resta para que

o sonho se faça real.

Meu pai era um homem com as nostalgias

do que nunca acontecera e isso minava-o víscera a

                                              [víscera

como as tais lagartas esfarelam as maçãs

e então sei-o agora calçava as ágeis sandálias

miraculosamente leves soltas imaginosas

indo de acaso em acaso de astro em astro

eram de vento as suas sandálias fabulosas

levando-o aonde mais ninguém poderia chegar.

 

Os outros não o sabiam nem eu o sabia

só o víamos sentado no cepo velho

raiado de negro como uma estrela fossilizada

por isso tudo era para ele mais irremediável e triste

sei-o agora tarde de mais

tarde de mais é uma dor de remorso

que me consome víscera a víscera

como as tais lagartas esfarelam as maçãs.

Mas de qualquer maneira existe um segredo

de que ambos partilhamos

ciosamente avaramente indecifradamente

como os astutos conspiradores

que fazem do seu segredo

um mágico tesouro inviolado.

 

Um segredo simples:

o que sentiste pai

sinto-o eu agora por ambos

sinto-o por ti

sinto-o por mim.

 

Ainda que por ele devorados.

 

In “Nome Para Uma Casa”

Livraria Bertrand

 

Fernando Namora

(1919-1989)

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Domingo, 25 de Dezembro de 2022

Recordando... Norberto Martins

NATAL

 

Na quadra do Natal

Neste nosso Portugal

Em todo o mundo também

É só amor e carinho

Ajuda-se o pobrezinho

Não se esquece ninguém

 

Para familiares e amigos

Os novos e os antigos

Dão-se prendas e presentes

Mas esquece-se em seguida

Continua a ser esquecida

As pessoas doentes

 

É assim em toda a terra

Fazem-se tréguas na guerra

Que acabam no outro dia

Volta o ódio e a vingança

Acabou-se a esperança

Terminou a alegria

 

Ó quanta hipocrisia

E alguma cobardia

No pensamento humano

Carinho e amor no Natal

Mas depois continua o mal

O resto de todo o ano

 

Amar como Jesus amou

Sonhar como ele sonhou

Ajudar o nosso irmão

Diga-mos não à guerra

Para que tenhamos paz na terra

Sem sacrifício nem opressão

 

O Natal deveria ser

E ninguém se esquecer

Todos os dias do ano

Para sempre nos amar

Toda a gente se respeitar

Nisto não há engano

 

In “União dos Escritores e Artistas

Transmontanos e Altodurienses – UNEARTA”

Revista mensal - N.º 13 - Ano 2 - Janeiro 2003

 

Norberto Martins

(Poeta popular)

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Segunda-feira, 19 de Dezembro de 2022

Recordando... Armando Vieira de Barros

SERÁ QUE PERCEBE

 

Será que percebe, então,

o sopro leve

que passa breve

a rondar p'la escuridão?

Por si roçando

de quando em quando

como carícia de mão;

depois, baixinho,

grave, mansinho,

num múrmurio modulado

e segredante

de voz distante

de algo fluído, alado,

nunca visível,

só perceptível

e presente em todo o lado

como louco vagabundo,

ora dançando

ou sussurrando,

a girar livro p'lo mundo

 

In "Este Sol que me Aquece"

 

Armando Vieira de Barros

(N.1929)

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Terça-feira, 13 de Dezembro de 2022

Recordando... Beatriz Arnut

O PRAZER E O DESGOSTO

 

– Quem és tu, homem lindo e poderoso,

que a rir passas assim tão apressado,

deitando-me um olhar tão desdenhoso?

 

– Sou o prazer e vou p’ra outro lado!

 

– E tu homem descalço e esfarrapado,

que amargurado vens a caminhar.

Fitando-me amoroso e apaixonado?

 

– Sou o desgosto e venho p’ra o teu lar!

 

(Saudade)

 

In “Poetisas de Hoje”

Editora Empreza do Díarío de Notícias - 1931

 

Beatriz Arnut

(1892-1958)

 

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Quarta-feira, 7 de Dezembro de 2022

Recordando... A.M. Pires Cabral

AS PROSTITUTAS

 

Naquele tempo,

elas desciam à vila, as prostitutas –

a única saída,

exactíssima resposta para a nossa

angústia seminal acumulada.

Vinham de Vale da Porca, ou outra

terra assim pasmada.

Traziam na cabeça lenços garridos,

na carteira de mão a triste história:

a sedução primária, a miséria espessa,

mas jamais o vício mercenário.

Nas eiras recebiam as nossas águas,

de permeio plantados como reis.

Procuravam lisonjeiras acertar

seu êxtase fingido com o nosso.

Beijavam-nos, diziam: tão novinho!

Suportavam-nos insultos e arremessos.

Com a mão experiente (mas não habituada)

guiavam-nos na bela, impreterível,

urgente aprendizagem,

concediam-nos crédito e carinho –

as tão castas mulheres,

as prostitutas.

 

Algures a Nordeste (1974)

 

In “Artes Marginais”

Antologia poética

Guimarães Editores -1998

 

A.M. Pires Cabral

(N.1941)

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Quinta-feira, 1 de Dezembro de 2022

Recordando... Pedro da Silveira

MEDITAÇÃO SOBRE A ETERNIDADE

 

Das árvores que plantei

nenhuma já me pertence

e de quase todas nem comi´

ou sequer vi os frutos.

Sempre soube que devemos morrer

e penso que é melhor

não se saber quando nem como.

E quanto ao que deixámos

não se recorde de quem foi.

Que só assim somos eternos.

 

In “Poemas Ausentes”

 

Pedro da Silveira

(1922-2003)

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