A QUEDA
Sobrevive-se a tudo
ou quase tudo,
ao vento assobiando nos ciprestes,
à tempestade aquartelada
nos teus olhos,
às indecisões do teu corpo.
Tudo,
ou quase tudo,
apenas à queda da magnólia
não.
Nunca nenhuma flor
sobreviveu.
In “Geografias Dispersas”
Editora Edita-Me
Alexandra Malheiro
(N.1972)
CONCEITO PEQUENINO
A tudo se empresta aroma.
De tudo aroma se extrai.
O trigo que o homem sonha
Precede, vivo, o trigal.
Nasce o trigo e cresce o pão
Que no sonho se transforma.
Só com raízes no chão
Tem asas livres o homem.
In “Cidade Sem Tempo”
Lisboa – 1985 – Edição do Autor
António Luís Moita
(1925-2013)
AS PESSOAS INSTANTÂNEAS
Quando a morte cai sobre as pessoas
é porque tem as asas cansadas
de dar voltas ao mundo.
Escolhe, hesitante, um dos seus cantores.
Escolhe quem, matinalmente, se cumprimenta.
A morte um dia esquece e desce
sobre os mesmos reverentes.
Esqueceu tudo o que dissera.
Ou fingiu que esqueceu tudo.
Alguém parou misteriosamente de falar.
E o silêncio quer dizer: “Acabou tudo.”
Quer dizer: “venham comigo até aquelas grutas!”
Agora finjam que estão velhos.
E que ninguém está nada triste.
Olhem para as vossas pernas,
não há pernas!
Nem mãos,
excepto para tocar em coisas indescritíveis.
As crianças que morriam.
Vou viver para a neve com os meus filhos
mergulhar nos rios soturnos e profundos
em segundos.
Por entre as algas e os peixes que prendiam
os braços das crianças que agarravam
os polvos misteriosos que ensinavam
a nadar os que mereciam.
Se a mim viesse algum dos mortos que ensinasse
a morrer a quem vivesse
a nadar a quem andasse
a dormir a quem falasse
Sem parar.
Imitaria a vida que vivesse
esse monstro que ensinasse
Que morresse.
Que matasse.
Sem matar.
In “A minha cor favorita é a neve”
Editora Escritor - 2000
António Ladeira
(N.1966)
AS LÁGRIMAS DO POETA
Um poeta barroco disse:
As palavras são
As línguas dos olhos
Mas o que é um poema
Senão
Um telescópio do desejo
Fixado pela língua?
O voo sinuoso das aves
As altas ondas do mar
A calmaria do vento:
Tudo
Tudo cabe dentro das palavras
E o poeta que vê
Chora lágrimas de tinta
In “O Pavão Negro”
Assírio & Alvim - 2003
Ana Hatherly
(1929-2015)
ELEGIA DO AMOR
I
Lembras-te, meu amor,
Das tardes outonais,
Em que íamos os dois,
Sozinhos, passear,
Para fora do povo
Alegre e dos casais,
Onde só Deus pudesse
Ouvir-nos conversar?
Tu levavas, na mão,
Um lírio enamorado,
E davas-me o teu braço;
E eu, triste, meditava
Na vida, em Deus, em ti…
E, além, o sol doirado
Morria, conhecendo
A noite que deixava.
Harmonias astrais
Beijavam teus ouvidos;
Um crepúsculo terno
E doce diluía,
Na sombra, o teu perfil
E os montes doloridos…
Erravam, pelo Azul,
Canções do fim do dia.
Canções que, de tão longe,
O vento vagabundo
Trazia, na memória…
Assim o que partiu
Em frágil caravela,
E andou por todo o mundo,
Traz, no seu coração,
A imagem do que viu.
Olhavas para mim,
Às vezes, distraída,
Como quem olha o mar,
À tarde, dos rochedos…
E eu ficava a sonhar,
Qual névoa adormecida,
Quando o vento também
Dorme nos arvoredos.
Olhavas para mim…
Meu corpo rude e bruto
Vibrava, como a onda
A alar-se em nevoeiro.
Olhavas, descuidada
E triste… Ainda hoje escuto
A música ideal
Do teu olhar primeiro!
Ouço bem tua voz,
Vejo melhor teu rosto
No silêncio sem fim,
Na escuridão completa!
Ouço-te em minha dor,
Ouço-te em meu desgosto
E na minha esperança
Eterna de poeta!
O sol morria, ao longe;
E a sombra da tristeza
Velava, com amor,
Nossas doridas frontes.
Hora em que a flor medita
E a pedra chora e reza,
E desmaiam de mágoa
As cristalinas fontes.
Hora santa e perfeita,
Em que íamos, sozinhos,
Felizes, através
Da aldeia muda e calma,
Mãos dadas, a sonhar,
Ao longo dos caminhos…
Tudo, em volta de nós,
Tinha um aspecto de alma.
Tudo era sentimento,
Amor e piedade.
A folha que tombava
Era alma que subia…
E, sob os nossos pés,
A terra era saudade,
A Pedra comoção
E o pó melancolia.
Falavas de uma estrela
E deste bosque em flor;
Dos ceguinhos sem pão,
Dos pobres sem um manto.
Em cada tua palavra,
Havia etérea dor;
Por isso, a tua voz
Me impressionava tanto!
E punha-me a cismar
Que eras tão boa e pura,
Que, muito em breve – sim! -,
Te chamaria o céu!
E soluçava, ao ver-te
Alguma sombra escura,
Na fronte, que o luar
Cobria, como um véu.
A tua palidez
Que medo me causava!
Teu corpo era tão fino
E leve (oh meu desgosto!)
Que eu tremia, ao sentir
O vento que passava!
Caía-me, na alma,
A neve do teu rosto.
Como eu ficava mudo
E triste, sobre a terra!
E uma vez, quando a noite
Amortalhava a aldeia,
Tu gritaste, de susto,
Olhando para a serra:
- Que incêndio! – E eu, a rir,
Disse-te: - É a lua cheia!...
E sorriste também
Do teu engano. A lua
Ergueu a branca fronte,
Acima dos pinhais,
Tão ébria de esplendor,
Tão casta e irmã da tua,
Que eu beijei, sem querer,
Seus raios virginais.
E a lua, para nós,
Os braços estendeu.
Uniu-nos num abraço,
Espiritual, profundo;
E levou-nos assim,
Com ela, até ao céu…
Mas, ai, tu não voltaste
E eu regressei ao mundo.
II
Um raio de luar,
Entrando, de improviso
No meu quarto sombrio,
Onde medito, a sós,
Deixa, a tremer, no ar,
Um pálido sorriso,
Um murmúrio de luz
Que lembra a tua voz.
O Outono, que derrama
Ideal melancolia
Nas almas sem amor,
Nos troncos sem folhagem,
Deixa vibrar, em mim,
Saudosa melodia,
Dolorida canção,
Que lembra a tua imagem.
A noite, que escurece
Os vales e os outeiros,
E que acende, num bosque,
A voz do rouxinol
E a estrela que protege
E guia os pegureiros;
A lágrima do céu
Ao ver morrer o sol,
Acorda, no meu peito,
Infinda e etérea dor,
Que à memória me traz
A luz do teu olhar.
Tudo de ti me fala,
Ó meu longínquo amor:
As árvores, a névoa,
Os rouxinóis e o mar.
Se passo por um lírio,
Às vezes, distraído,
Chama por mim, dizendo:
“Oh! Não te esqueças dela!”
Diz-mo também, chorando
O vento dolorido.
Diz-mo a fonte, a cantar,
Diz-mo, a brilhar, a estrela.
E vejo, em toda a luz,
Teus olhos a fulgir.
Como adivinho, em tudo,
A alma que perdi!
Não encontro uma flor,
Sem o teu nome ouvir.
Não posso olhar o céu,
Sem me lembrar de ti!
Por isso, eu amo o pobre,
O triste e a Natureza,
A mãe da humana dor,
Da dor de Deus a filha.
Meu coração, ao pé Dum pobrezinho, reza;
Canta, ao lado dum ninho,
Ao pé da estrela, brilha.
O meu amor por ti,
Meu bem, minha saudade,
Ampliou-se até Deus,
Os astros alcançou.
Beijo o rochedo e a flor,
A noite e a claridade.
São estes, sobre o mundo,
Os beijos que te dou.
Hás-de senti-los, sim,
Doce mulher de outrora.
Ó roxo lírio de hoje,
Ó nuvem actual!
Como dantes teu rosto,
A rosa ainda hoje cora;
Beijo-te, sim, beijando
A rosa virginal.
Teu espectro divaga,
Ao longo dos espaços.
Teu amor, feito luz,
Desce do Firmamento.
Se abraço um verde tronco,
Eu sinto, entre os meus braços,
Teu corpo estremecer,
Como uma flor, ao vento.
Soluça a tua dor
Nas infinitas mágoas,
Que, no fumo da tarde,
Eu vejo, além, subir.
E paira a tua voz
No marulhar das águas,
No murmúrio que sai
Das pétalas a abrir.
Se os lábios vou molhar
Nas ondas duma fonte,
Queimam meu coração
Tuas lágrimas salgadas.
E, quando acaricia
O vento a minha fronte
Eu bem sinto, sobre ela,
As tuas mãos sagradas.
Quando a lua, no Outono,
Envolta em luz funérea,
Morta, vai a boiar
Nas águas do Infinito,
Doira meu frio rosto
A palidez etérea,
Que dantes emanava
O teu perfil bendito.
Quando, em manhãs d`Abril,
Acordo, de repente,
E vejo, no meu quarto,
O sol entrar, sorrindo,
Julgo ver, ante mim,
Teu corpo resplendente,
Tua trança de luz,
Teu gesto suave e lindo.
Descubro-te, mulher,
Na Natureza inteira,
Porque entendo a floresta,
A névoa, o céu doirado,
A estrela a arder, no Azul,
A lenha, na lareira
E o lírio que, na cruz
Do outono, está pregado.
Falas comigo, sim,
Da dor, do bem, de Deus.
Repartes o meu pão,
Amor, pelos ceguinhos.
E pelas solidões
Os pobres versos meus,
Como os pobres que vão,
A orar, pelos caminhos.
És a minha ternura,
A minha piedade,
Pois tudo me comove!
O zéfiro mais leve
Acende, no meu peito,
Infinda claridade;
E a brancura do lírio
Enche meu ser de neve.
Todo eu fico a cismar
Na louca voz do vento,
Na atitude serena
E estranha duma serra;
No delírio do mar,
Na paz do Firmamento
E na nuvem, que estende
As asas, sobre a terra.
Todo eu fico a cismar,
Assim como que esquecido,
Ante a flor virginal
E o sol enamorado.
Ante o luar que nasce,
Ao longe, dolorido,
Dando às cousas um ar
Tão triste e macerado.
Todo eu medito e cismo.
Um vago e etéreo laço
Prende-me ao teu imendo
E livre coração,
Que abrange o mundo inteiro
E ocupa todo o espaço,
E que vai povoar
A minha solidão.
Por isso, eu vivo sempre,
Em doce companhia,
Com o pobre que pede
E a estrela que fulgura;
E, assim, a minha alma,
Igual à luz do dia
Derrama-se, no céu,
Em ondas de ternura.
Sou como a chuva e o vento
E a sombra duma cruz!
Lira, que a mais suave
Aragem faz vibrar.
Água que, ao luar brando,
Em nuvens se traduz;
Fruto que amadurece,
À luz dum claro olhar.
Pedra que um beijo funde
E místico vapor,
Que um hálito condensa
Em pura gota de água.
Sou aroma que um ai
Encarna em triste flor;
Riso que muda em choro
A mais pequena mágoa.
Vivo a vida infinita,
Eterna, esplendorosa.
Sou neblina, sou ave,
Estrela, Azul sem fim,
Só porque, um dia, tu,
Mulher misteriosa,
Por acaso, talvez,
Olhaste para mim.
In “Poesia de Amor”
Antologia Portuguesa
Selecção e prefácio de José Régio e Alberto de Serpa,
Livraria Tavares Martins - Porto - 1945
Teixeira de Pascoaes **
(1877-1952)
** Pseudónimo de Joaquim Pereira Teixeira de Vasconcelos
LITERATURA
De literalmente aturar
atura a minha literatura
estar entre toda a Literatura que há até hoje e houve
e literatura nenhuma.
Se é surrealista ou não em suma
não sei responder.
Se ela é existencialista
por exemplo que sei eu
entre os franceses por exemplo
dos franceses
André Frénaud
e os esquizofrénicos de Paris
do frio
o frio
não me deixa se calhar ser.
Que eu tanto canto
a existência do frio como do calor
a existência do Verão e do Sol
como da chuva e do Inverno
eu canto qualquer coisa
eterno provedor da minha república
só interior de cantar.
Senão, ó bela, é instaurarem-me
um processo que não dá para o petróleo
cole-o o tempo ao ramo
o amo ao cavalo
que exprimo e falo de mim primeiro
primeiro de mim
depois e só depois dos outros sim
e entre os dois enfim
ganhar qualquer coisinha
para a espinha que dói muito a escrever
senão é ver.
Beber umas coisas
e se ela noutra arte pousar
e cá isso de surrealista ou existencialista
não o sei ainda que a mim não mo disseram.
Só considerar isso das duas coisas.
À parte isso falo de existir
ganhar uns carcanhóis
com a arte de escribir
comer uns caracóis com o dinheiro arranjado
fumar uns cigarróis
beber cá umas coisas
e de artes só há duas.
Sub-reptilmente
ou existencialmente ainda continuar.
Existentivamente.
Comer.
Beber.
Escrever.
Mais umas mulheres nuas.
In “O Ar da Manhã”
Assírio & Alvim
António Gancho
(1940-2006)
PALAVRAS DE UM AVESTRUZ TODO GRIS
Arrancam-me as penas
E eu sofro sem dizer nada:
- Sou ave
Bem educada.
E, se quisesse,
Podia
Morder-lhes as mãos morenas,
A esses
Que sem piedade
Me roubam as penas que me cobrem;
E, no entanto,
Sem o mais breve gemido,
O meu corpo
Vai ficando
Desguarnecido ...
E elas,
Aquelas
Que se enfeitam, doidamente,
Com estas penas formosas
- Que são minhas!
Passam por mim, desdenhosas,
Em gargalhadas mesquinhas.
Sim; eu sofro sem dizer nada:
- Sou ave
Bem educada.
Mesmo que fosse pequena
E eu te visse pobre ou nua
- Ninguém ama a sua Pátria por ser grande,
Mas sim por ser sua!
In “Canções e Outros Poemas”
Quasi Edições
António Botto
(1897-1959)
. Mais poesia em
. Eu li...
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